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Seja gentil com você
Anthony Tran
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Neste artigo:

Diariamente costumamos carregar em nossos bolsos uma lista enorme de tarefas a serem cumpridas. E nos cobramos – e somos cobrados – para que tudo aconteça impecavelmente: organizar a casa; preparar refeições completas e diversificadas; colocar as crianças para dormir até às 20h30; meditar uma hora por dia; finalizar os projetos no trabalho antecipadamente e sem falhas; ter novas ideias para chamar a atenção de investidores; ir à academia; dar afeto sincero a quem mora conosco; ligar para os amigos; ler um livro por semana; maratonar uma série na plataforma de streaming; e dormir oito horas diárias. 

Contudo, quando não alcançamos o resultado esperado; quando erramos em algo para o qual nos dedicamos tanto; quando as tarefas estão acumuladas e nossas fragilidades se tornam visíveis, como nos tratamos? Se é com voz dura e severa, se cobrando e se culpando, e dizendo a si mesmo ser incapaz de realizar algo bem feito, então tenha certeza: é hora de mudar a postura e aprender a dar um abraço apertado em você, acolhendo quem se é com amorosidade, carinho e respeito. A isso se dá o nome de autogentileza, prática tão escassa quanto essencial para seres humanos felizes e emocionalmente saudáveis – e, consequentemente, para uma sociedade mais equilibrada

Mas o que de fato é ser gentil consigo? Para responder a essa pergunta, fui conversar com Alan Pogrebinschi, mestre em Psicologia e diretor da Escola de Mindfulness Funcional. Conta ele que há uma única coisa, a mais importante no processo de autogentileza: parar de brigar com você mesmo. “Não é tanto aquilo que você pode fazer a mais ou aquilo que pode fazer de menos. Muito mais importante é o que se pode parar de fazer. Você pode parar de se machucar, de se debochar, de se ameaçar, de se maltratar. Diria que isso é 99% de toda a autogentileza, o resto é 1%.” 

Em sua visão, a maior parte das pessoas se trata, a todo momento, com muita aspereza. Por isso, o objetivo é ser capaz de diminuir cada vez mais a intensidade e a frequência desse maltratar. “Também é importante se dar coisas boas, permitir um tempo para você, cuidar da saúde, falar a si mesmo palavras gentis, vivenciar o lazer. Mas tudo isso não vale praticamente nada se não parar de ser o seu próprio carrasco”, indica. 

Menos julgador de si

Ao  conceito  de  autogentileza,  podemos acrescentar  também  os  apontamentos de Artur Scarpato, mestre em Psicologia e psicólogo clínico há 30 anos. Conta ele que ser autogentil é ser mais apoiador e menos julgador de si mesmo, aceitando as próprias fraquezas e dificuldades com atitudes de autocuidado e incentivo. “Nesse processo, aprendemos a nos ver como seres abertos, em aprendizado constante, que falham, tropeçam, mas que, com acolhimento e apoio gentis, são capazes de se levantar. Ser gentil consigo contribui com a regulação emocional, ajudando a pessoa a se acalmar e se sentir amada.” 

A ausência desse estado é, por conseguinte, reflexo de um processo cultural social que pouco estimula cada ser a olhar para dentro de si e a cuidar de suas emoções, assim  como  igualmente  está  relacionada  à  excessiva  competição  presente  em tantas relações humanas. Afinal, há uma pressão para que se tenha status, sucesso profissional, dinheiro na conta, uma excelente forma física, esteja antenado com a moda e seja espiritualizado. Como aponta Scarpato, “uma sociedade que incentiva a competição e o sucesso leva as pessoas a se comparar o tempo todo, buscando se sentir especiais e acima dos outros”. 

Entretanto, o psicólogo clínico destaca que, à medida que aprendemos a dar a mão a nós mesmos, a ser gentis conosco, também passamos a sair dessa referência competitiva, comparativa, focada no binômio sucesso-fracasso. “Como resultado, passamos a nos sentir conectados aos outros, compartilhando a vulnerabilidade que é própria da natureza humana. Isso diminui a culpa, o isolamento e os sentimentos de inadequação e inferioridade”, observa Scarpato. 

Gentileza gera gentileza

Até hoje facilmente se encontra em pulseirinhas, camisetas e pôsteres a frase que, desde a Eco-92, passou a ser a marca associada ao pregador urbano José Datrino (1917-1996), mais conhecido como Profeta Gentileza, “Gentileza gera gentileza”, pintadas  originalmente  nas  pilastras  do Viaduto do Gasômetro, no Rio de Janeiro. 

Sem dúvida, além de tornar o ambiente melhor, ser gentil para com o próximo demonstra uma atitude elegante, cortês e faz, geralmente, com que o tratamento recebido também seja assim. Porém, podemos refletir o seguinte: a prática verdadeira da gentileza para com o outro não está intrinsecamente atrelada à auto gentileza? Alan Pogrebinschi diz que sim e ressalta que a maneira que entendemos o desenvolvimento da auto gentileza é a partir do aprendizado que tivemos com outros sendo gentis com a gente. 

Se uma pessoa não sabe profundamente ser tratada com gentileza, com carinho e com amor por uma outra, também não conseguirá sequer saber como começar a se tratar assim. Porque o primeiro aprendizado em se relacionar com os outros é eles se relacionando com você. Se a criança começa com poucas habilidades sofisticadas nesse sentido, são os adultos próximos que vão lhe dando esse modelo. Então, se essa pessoa ouviu muito os outros sendo duros com ela, ela acaba por não ter nenhum bom modelo de ser cuidada e terá dificuldade em fazer isso consigo. Assim como terá uma facilidade enorme em ser dura e não dar importância para si.” 

Pode-se acrescentar também que o desenvolvimento dessa habilidade favorece, como  aponta  Artur  Scarpato,  a  superação  de  experiências  traumáticas  de bullying, assédio e abuso, que tendem a afetar a relação das pessoas com elas mesmas. “Cada pessoa é composta de partes internas, de subpersonalidades que se relacionam de modo mais ou menos integrado. Uma parte excessivamente crítica pode criar uma atitude severa e demasiado dura com outras partes de si, gerando dor, sofrimento, auto punições e autossabotagens. A autogentileza reflete maior integração psicológica, uma relação madura e harmoniosa entre as partes internas que leva a um maior bem-estar”, salienta o psicólogo. 

O  mesmo  enfatiza  Carol  Miltersteiner, escritora, facilitadora e investigadora da saúde mental na relação com o trabalho. Com longo estudo relacionado à Síndrome de Burnout, ela diz que é possível apontar relações entre esse distúrbio e a ausência de autogentileza. “Se o estresse se torna tóxico quando estamos sob constante sensação de ameaça, cultivarmos um senso de segurança interno nos fortalece. Na minha própria experiência com burnout, vejo que o cultivo da autogentileza tem contribuído imensamente na minha recuperação. Inclusive, para que eu não me force a estar em ambientes e situações que já sei serem nocivos para mim”, atesta. 

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Se tantas vezes nos cobramos e nos punimos por tudo, das coisas que acreditamos ser graves até as mais simples, precisamos justamente aprender a romper ciclos automáticos de autopunição e autocobrança. Mas como fazer isso? Bem, não há uma técnica específica que garanta essa mudança de chave. Mas podemos relacionar uma série de atitudes que auxiliam nesse processo. 

Para começar, é fundamental que cada pessoa desenvolva uma boa capacidade de observar seu universo particular e o que está ao seu redor, acolhendo suas próprias vulnerabilidades, respeitando suas limitações, sendo amável diante de falhas e reconhecendo que as dores da existência não precisam ser uma âncora. 

Na visão de Jus Prado, escritora, especializada em Hatha Yoga e à frente da Lotus Viajante, portal sobre autoconhecimento e espiritualidade, é necessário aprendermos com as experiências que passamos, dolorosas ou não, em vez de desejar apenas que as coisas tivessem sido diferentes. “Não seria se conformar, mas aprender a encarar os desafios da vida desde uma perspectiva mais inteligente e amigável para que, de fato, possa ocorrer alguma mudança nos ciclos  de  pensamentos  e,  consequentemente, nas ações e seus resultados. Auxilia nesse processo a prática da meditação, trazendo a mente para o momento presente, o único instante no qual existimos e podemos empreender mudanças”, diz.  Aceitar, afinal, torna-se atitude ativa no processo. 

Sim, acolher que somos imperfeitos é excelente  e  libertador,  mas  pede  coragem, uma vez que o autoconhecimento verdadeiro e sincero envolve lidar com sentimentos dos quais tantas vezes fugimos. “Ele é a base para que possamos reconhecer que somos mais do que os padrões de pensamentos que carregamos, que em sua grande maioria são subjetivos. Ou seja, são crenças que reproduzimos de terceiros, seja da sociedade em que se vive ou das gerações passadas, não levando em consideração a individualidade de cada um”, conta Jus. 

Para ela, se o processo de autoconhecimento começa em si, ele deve, porém, ir além e alcançar o outro. “As relações humanas ajudam a lapidar as emoções brutas que temos, tais como raiva, egoísmo e arrogância. Quando percebemos que isso também faz parte de nós, conseguimos acolher, e não mais ignorar, o que seriam nossas sombras. Ao incorporá-las, liberamos o peso do passado, abraçamos nossa vulnerabilidade  e  transformamos  nossa percepção sobre a vida para melhor.” 

Não  precisamos,  no  entanto,  querer expulsar da noite para o dia o carrasco que habita nosso ser. Mesmo que tenha atrapalhado  nosso  percurso,  ele  estava ali por um bom motivo: nos proteger. “O papel da autocobrança é nos preservar da dor, mesmo que isso seja de um jeito torto e nada saudável. Mas isso se instalou porque existe uma parte de nós profundamente assustada com o mundo. E é preciso termos muito amor e muita consideração por todas essas diferentes partes que nos compõem”, diz Carol. 

Gentileza no dia a dia

Ok, já entendemos o que é a autogentileza, os prejuízos oriundos da ausência dela, a importância do autoconhecimento e que devemos parar de nos punir. Mas também já deduzimos que a formação desse ser mais gentil em nós é fruto de um contínuo cultivo. O que precisamos aprender agora é como perceber rapidamente o gatilho da autocobrança e adotar medidas práticas em nosso cotidiano. 

Dois passos são essenciais na análise de Alan Pogrebinschi. O primeiro é nos cercar de pessoas que nos tratam bem e nos afastar, na medida do possível, das que não nos fazem. “Estarmos em um ambiente social saudável é determinante para cultivar a autogentileza.” O segundo é aprender a notar com rapidez quando não nos tratamos bem, quando uma voz mais dura se faz ouvir em nosso íntimo. 

Somado a isso, ajuda muito manter hábitos como leituras, estudos, músicas edificantes, assistir a filmes que inspiram, fazer ioga e atividades físicas regularmente, além de incluir a meditação na rotina. “A meditação me ensinou algo maravilhoso: a nossa atenção vai viajar por aí durante a prática. A gente vai se distrair. Mas, em algum momento, retomamos o aqui e agora. E o exercício é esse. Não é manter-se sempre presente, sempre impecável. É encontrar o caminho de volta sempre que nos desviarmos,  porque  isso  acontece,  todo dia, toda hora”, comenta Carol. 

Jus Prado crê que uma boa sugestão é reconhecer nossa condição de aprendizes. “Todos estamos aqui para isso. Podemos ter lições diferentes, mas o objetivo do aprendizado é o mesmo: a realização da nossa verdadeira natureza. Indo além, cuidar de si mesmo e do outro é uma oportunidade e tanto para desenvolver a arte de ser gentil.” 

Outro exercício, dessa vez indicado pelo psicólogo Artur Scarpato, é escrever cartas como se fosse um amigo sábio imaginário se dirigindo a você, falando sobre as dificuldades que você está vivendo. Veja o que ele tem a lhe dizer e aproveite para aprender atitudes mais construtivistas e gentis. “Busque se olhar com os olhos com que esse amigo te olharia. Ele percebe suas falhas e te aceita, ajudando você a se sentir acolhido. Ele abre o coração para te receber e te apoiar porque quer o seu bem. Em sua gentileza existe aceitação, respeito, cuidado e delicadeza. Ser autogentil é ser o melhor amigo de si mesmo”, diz. Desejo que você possa experimentar a autogentileza como esse amigo, sempre pronto a te encorajar e te ver florescer.

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