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Para todo mundo que está de mudança (para fora ou para dentro)
Fallon Michael
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Escuto a fala do professor de um grupo de estudo que frequento, numa segunda-feira-dia-oficial-de-começar-qualquer-coisa, e a fala que escuto me atravessa como lança: “Existe qualquer coisa localizada numa certa geografia”.

É que tem isso: tenho namorado os contornos. Flertado com tudo que é borda. Se quando criança batia palminhas eufóricas cada vez que uma linha era deixada para trás, hoje me abismo: o que aponta e desponta, de interno, em toda fronteira lá fora que se cruza? Porque, sim, tem algo.

Veja quem muda de país, por exemplo. Não há sempre um quê de diferente, por mais que sutil, na aura de quem migra?

Se uma fronteira é um tracejado físico ou artificial que separa áreas geográficas e são conhecidas principalmente por serem limites políticos e separarem países — diz o Google e as cartilhas —, por que, então, movem-se também nossos continentes mais íntimos, estilhaçando a pangeia existencial?

Não posso deixar de pensar em Agnès Varda na apresentação de seu Les plages d’Agnès dizendo que, se você abrisse uma pessoa, iria se deparar com paisagens, mas que, no entanto, ao abri-la, encontraria praias. No filme, a cineasta cartografa territórios geográficos, mas também afetivos. Da infância em Bruxelas à juventude no Mediterrâneo; do casamento com Jacques Demy às lutas feministas. Agnès retorna ao mapa para, percorrendo novamente com o dedo o tracejado dos caminhos que já fez, costurar a própria narrativa.

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Já eu imagino sempre que cada um de nós é povoado por cidades. São as cidades que nos habitam. E, dentro, quebrando a lógica do conceito de impenetrabilidade, nada precisa ser destruído para que algo novo brote.

“E, no campo da vida psíquica, imperam regras pouco conhecidas e aceitas em nossa vida desperta. Pois, no inconsciente, os opostos coexistem, ignorando o princípio de não contradição; o tempo opera na criação de uma cidade impossível, onde as construções antigas são mantidas no mesmo ponto em que uma nova edificação é erguida; e aquilo que falha na língua, aquilo que falha no ato, traz consigo um índice do sujeito.”

— @coletivoreconto

As cidades, do lado de fora e as do lado de dentro, trazem sempre seus símbolos e deixam que produzamos outros. É nos relatos do explorador veneziano Marco Polo descrevendo para o imperador Kublai Khan as imensas cidades do império mongol, no livro As cidades invisíveis, de Italo Calvino, que vemos as localidades se desfazerem do conceito geográfico para se tornarem representações complexas da existência humana. “A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente”, pontua o explorador e arremata: “A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir”. 

Quando essa poética afetiva dos espaços se edifica e a partir dela tratamos de nos movimentar, é também uma língua que faz as malas e parte. A língua-mãe, talvez e aliás, seja o único território do qual nunca conseguiremos migrar por inteiro, não importa o quanto nos movamos. É ela, como cuidadora maior das memórias, que anda de mãos dadas com as gentes.

Deve ser também um pouco sobre ela que fala o filósofo francês Gaston Bachelard, em seu A poética dos espaços, quando se refere à casa e ao universo. “Nessa comunhão dinâmica do homem e da casa, nessa rivalidade da casa e do universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico”, lei, suspiro e encontro, então, o que procurava: a casa vivida. Não importa a fronteira cruzada. Ainda seremos nós quem estaremos do lado de lá.

“Escavar o que, se o seu existir, o seu de fora, a ciência dos feitos, a dura história, grafias, todos esses acontecimentos possuíam a qualidade soberba das perobas, perenes, ele ouvira, os trens passarão por esses dormentes, meu filho, para sempre para sempre. Pra onde vão os trens meu pai? Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços no mapa, e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti.”

— Hilda Hilst, no livro Tu não te moves de ti

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