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Vídeos que ninguém vê, momentos que ninguém lembra
Gian Cescon
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Ela era uma mãe dedicada. Estava com a filha nos momentos mais importantes, sempre com o celular nas mãos, pronta a registrar cada instante. A primeira papinha. O primeiro passo. O balé. A viagem de férias. O campeonato de judô. A manhã no parque. Gravava cada momento, desde o dia do parto. A primeira gargalhada? Lá estava ela, com o aparelho em mãos. Cada façanha um vídeo. Nas apresentações da escola a mãe se colocava logo à frente, agachada, encurvada, o braço levantado, o celular ativado. No dia em que a filha completaria cinco anos, a tragédia que às vezes bate à porta, bateu. A menina se foi. Simplesmente deixou de existir. Sem aviso. Sem preparo. Tampouco sem permissão. 

Em meio à dor, a mãe se desesperou. Não conseguia se lembrar do cheiro da filha, da voz da filha, do sorriso da filha. 

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Lembrou-se então das centenas de milhares de vídeos feitos naqueles anos. A maioria, no entanto, havia se perdido. Ela trocara de celular algumas vezes, já não tinha os arquivos e o último aparelho atirara longe, em mil pedaços, na manhã em que a filha morreu. Mas havia a nuvem, a esperança em formato de algodão. O sobrinho ajudou e conseguiram reaver alguns vídeos. Não todos, que eram muitos. Mas uma boa parte. 

Sentada diante deles, a mãe, mais uma, vez chorou. Ela assistia aos vídeos, via a menina, mas era como se fosse uma estranha. Parecia a sua filha, mas não era a sua filha. Faltava conexão. Assistia aos momentos, mas não conseguia se lembrar deles. Procurava dentro de si, em algum lugar, mas encontrava apenas fragmentos. Era como uma pessoa qualquer na plateia assistindo ao filme de outro alguém. Foi então que percebeu, inconsolável: focada em gravar os momentos da menina, havia deixado de construir memórias. E não há vídeo no mundo capaz de substituir uma recordação. 

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Filmar com o celular virou a rotina, o padrão. É impressionante o número de pessoas nos shows, por exemplo, que passam o tempo todo filmando. Ao que vem a pergunta: “Se é pra filmar sem parar, não seria mais barato e confortável assistir pela internet?”. Tudo bem gravar um pouco, para mandar para os amigos, algum parente ou até postar nas redes. Mas um pouco significa um pouco. Ao que se segue outra questão: “Quem, hoje em dia, assiste a vídeos de mais de dez, trinta segundos?”.  A não ser que seja um fã aficionado de um tema específico, qual ser humano atual assiste a tanto vídeo de tanto tempo? Ainda mais vídeo pessoal, que não tem nada de viral, engraçado ou seja lá o que estiver na moda. 

Em todas as situações, de todos os tipos, as pessoas gravam vídeos que ninguém vê depois. Com os filhos é a mesma coisa. Lá está a criança, em seu momento de maior emoção na partida de futebol, na dança da festa junina, na apresentação da escola e os pais e mães com os devidos celulares nas mãos, gravando vídeos destinados ao esquecimento, perdendo a oportunidade de estar presente, se conectar com o presente, com a criança e construir algo que é único, mágico e irrecuperável: a recordação.

Enquanto filmamos, deixamos de construir memórias

Nós só construímos memória quando estamos atentos, conectados ao instante. A memória é uma teia intrincada pelos sentidos e sentimentos. É um mosaico formado por cheiros, sons, cores, sombras, medos e alegrias. Pelo suor na nuca em um dia quente ou o ar gelado pelas narinas em uma noite chuvosa e fria. É o arrepiar da pele costurado pelo barulho distante de um motor na exata hora do abraço de quem há tempos não via. É o sorriso da criança saindo para seu primeiro dia de escola enquanto o coração dá um nó por perdê-la por esse primeiro de muitos dias. 

A memória é a resposta à cada momento dedicado a viver. E não há memória possível de ser construída com um celular nas mãos. Enquanto filmamos desviamos o foco do momento e perdemos a incrível capacidade de vivenciar a existência, absorver o instante e construir as recordações que serão o sustento de tudo mais que vier pela frente. Ao enchermos a nuvem de vídeos, esvaziamos as conexões entre a nossa história e nós mesmos e caminhamos para um futuro em que o vazio e a solidão serão a nossa única e possível recordação. 

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