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Ele morreu sozinho
Mahbube Baqeri
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As novidades e a permanência

Estava levando meu filho caçula na escola quando vi um movimento de polícia em frente à casinha branca de uma porta e duas janelas. Todos os dias vamos a pé para a escola aqui no interior. Passamos pelo terreno com cerca branca gasta, muitas hortaliças e flores, pela construção ampla de tijolos à vista com a placa de vende-se, pela casa com o Fusquinha azul – diante da qual meu filho me dá um cutucão numa constante e feliz brincadeira sobre o carro e a cor. Para distraí-lo, vou apontando os lugares, as novidades ou a permanência. A mesma rua, a mesma praça, o mesmo banco e o mesmo jardim. Hoje diferentes, com a viatura, as luzes vermelhas e o movimento. 

Deixei o pequeno na escola e voltei. Enquanto dois policiais aguardavam do lado de fora, uma policial – mãe de outro aluno da mesma escola – pulava o portão de grades tão brancas como o restante da casa. Um cheiro forte vinha de dentro. 

“O que aconteceu?”, perguntei para duas mulheres que observavam a ação. “A vizinha chamou a polícia, parece que o Seu Doca morreu”. 

Estranhando o silêncio e, depois, o cheiro, os vizinhos bateram na porta, bateram palmas, gritaram, telefonaram. “Ele era amigo de todo mundo aqui”. Sem sinal, pediram ajuda. 

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Morrer sozinho

Agradeci a resposta, lamentei como pude, e retomei o caminho. Voltei para casa pensando no Seu Doca, que não conheci, e em todas as pessoas que morrem sozinhas. Em como há de ser estar consigo mesmo e mais ninguém na hora da partida. O primeiro pensamento é de pesar. “Coitado, morreu sozinho”. Será? Não morri para saber a complexidade desse momento. Pude estar com meus dois avós maternos, que me criaram, no instante de cada um. Um partiu cedo, pelas doenças incuráveis que a vida traz, a outra no tempo esperado da velhice. As duas despedidas foram suaves, tranquilas. 

A tristeza do adeus de mãos dadas com a alegria de terem tido uma boa vida, das muitas memórias felizes e marcantes deixadas em quem fica. 

Mas, e estar sozinho? É triste? Talvez sim, talvez não. Morrer é uma das questões que dispensam certezas. Como não sabemos a nossa hora, não temos como garantir que estaremos cercados das pessoas queridas, como aconteceu com meus avós, ou sozinhos. Preparando o café, tomando banho, entrando no carro, calçando o sapato de todo dia, assistindo a um programa bobo na televisão, deitados num leito de hospital, dormindo. Talvez haja tristeza. Talvez medo. É sempre um pouco assustador saltar no desconhecido. 

Mas talvez o sentimento final dependa muito mais da vida que se teve do que do momento da partida. 

Morrer sozinho pode não ser tão triste quanto viver sozinho. Quanto ter passado a vida sem construir relações, cultivar afetos, viver histórias. Importar-me com alguém, ter alguém que se importe comigo. Seja um amigo ou um vizinho. Nem todo mundo é cercado por família. Seu Doca parece ter se importado com as pessoas. E as pessoas certamente se importavam com ele. Talvez não tenha sido triste a sua despedida.  

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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