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O que os objetos contam sobre nós?
Kate Darmody
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Uma mesa fixa de granito amarelado na cozinha. Único móvel da casa para a qual nos mudamos. Por ser uma mudança temporária, deixamos o apartamento em São Paulo como está. Além da transitoriedade da empreitada, nosso trabalho continua baseado na capital paulista, para onde vamos com frequência. A mobília, portanto, permaneceu onde estava. Não trouxemos para Minas nem um copo. 

Na mala só roupas, objetos pessoais e expectativas. E o desafio de mobiliar uma casa gastando o mínimo possível. Por mais lúdico que possa parecer morar numa casa que não tenha teto não tenha nada, precisávamos de um lugar para dormir, assentar o corpo, cozinhar, acomodar a bagagem. 

Mobiliar sem gastar

Seguindo o exemplo bem-sucedido da minha tia, convoquei uma reunião de conselho. “Se alguém tiver um móvel para me emprestar por um ano, agradeço”. 

Minha mãe foi a campeã, oferecendo metade dos itens da ampla casa de dois andares, ocupada por móveis e objetos que ela tem abrigado em décadas de pavor ao desperdício e apego à frase “vai que um dia eu preciso”.

Um exemplo é a cama de viúva que ela, divorciada duas vezes e sem intenção de se casar pela terceira, dificilmente chegará a usar. Meu tio ofereceu uma mesa e quatro cadeiras do restaurante, além de duas flores de prata recebidas como presente de casamento há quarenta anos e que ainda aguardam uma superfície para enfeitar

Da sogra vieram duas camas herdadas do bisavô dos meus meninos. Duas belas peças de madeira maciça torneada, ex-moradoras da antiga casa de fazenda que, um dia, foi o centro de uma vida vigorosa, com muitos quartos, cestas e tachos de doce de goiaba. Da minha tia do meio veio a oferta da antiga mobília da sala do piano. “Tem certeza?”, perguntei. 

A sala do piano foi protagonista da minha infância. Ocupava o primeiro cômodo na casa dos meus avós, logo na entrada, na mais nobre posição

Eu não entendia como minhas tias podiam dividir o quarto e o piano ter um cômodo inteiro para si. Ali era o meu refúgio, e o ponto de encontro das visitas diárias. 

A melodia do piano foi a trilha sonora dos meus sonhos de menina, dos que realizei e dos que ficaram por realizar. E agora minha tia a oferecia a mim, para habitar comigo a nova jornada. 

Silêncio que diz

A morada não se faz só pela casa em si, mas por aquilo que abriga. Os nossos humores, as nossas alegrias, as nossas angústias e os objetos que compõe o complexo mosaico do existir cotidiano. É possível perceber a história de uma casa e seus habitantes pelas coisas dentro dela.

Assim, os objetos são as marcas visíveis que deixamos pelo caminho. Mostram o peso ou não da memória no presente, o apego às recordações ou ao futuro, o apreço pelo conforto ou pelo luxo, pela praticidade ou pelo design, pela rigidez ou pela liberdade. 

O silêncio dos objetos que compõe a morada diz muito mais sobre nós do que qualquer palavra. 

É um privilégio poder atravessar essa nova etapa com objetos que carregam uma história tão bonita, que trazem consigo uma pequena parte de pessoas queridas. É como mobiliar a casa com abraços amigos e ser recebida com um aconchego.

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