Se você vive em uma grande cidade, assim como eu, deve saber o quanto a vida é feita de correria e prazos apertados. Perdemos horas no trânsito e parece que nunca temos tempo suficiente. Bem diferente dessa realidade, as pequenas cidades e as zonas rurais são um ponto de inflexão à rotina exaustiva das metrópoles.
Trocar o ritmo das capitais pelo do campo pode não ser apenas uma oportunidade de trocas culturais, mas também de perceber outros modos de viver e de se perceber diante da imensidão que é o mundo e seus estímulos ao redor.
O sol a nascer, pássaros cantando por todo o lado, o orvalho das plantas brilhando sob a luz, um passeio com meu cachorro e um pedal sem ciclovia ou ciclofaixa, árvores por todo o lado. A vida no campo nos dá uma excelente oportunidade de olhar para dentro. Por outro lado, ela também pode apresentar um lado não tão luminoso assim, como contarei a seguir.
Vivências
Quando minha editora, a Carolina Vellei, pediu para que eu escrevesse sobre a minha experiência no campo e sobre o que essa vivência poderia ensinar, senti que isso poderia ser uma tarefa bem complexa.
Apesar de ter nascido e crescido na zona rural do Rio Grande do Norte, sempre desejei me mudar para um lugar bem maior — talvez fosse a adolescência e os desejos para conhecer algo novo e novas pessoas —, embora nunca tenha deixado de aproveitar os bons momentos enquanto vivia no campo.
Meus pais, avós, bisavós e tataravós vieram de lá e todos os meus ancestrais, até onde sei, viveram uma relação de pertencimento e orgulho pela zona rural.
Talvez um dos momentos mais especiais do ano seja perceber a transformação da Caatinga no período de chuvas, que deixa de ser um bioma quase desértico com galhos e folhas secas e se torna um local vibrante, cheio de energia, rodeado de animais e cores.
O humor das pessoas muda, as expectativas em relação à colheita do ano e o otimismo sobre o futuro são diretamente influenciados pela ação das chuvas no solo sertanejo. Para quem vive da pequena pecuária e da agricultura familiar, bons índices pluviométricos significam comida para os animais e terra fértil para o plantio de feijão, melancia, milho, arroz e por aí vai.
Minha avó conta a tristeza e as dores vividas durante as secas nos anos de 1958 e 1983, quando o Nordeste ainda era um lugar de expropriação, pobreza, concentração de renda e terras — não que isso tenha acabado, mas muitas dessas coisas foram, ao menos, atenuadas com o passar dos anos. A seca matava não só a fauna e a flora da Caatinga, mas também as pessoas, devido à fome, à sede e à pobreza extrema.
Pude viver na pele o desespero de sentir a seca à espreita, já que entre 2012 e 2017 – período que foi dos meus 11 aos 16 anos – o semiárido nordestino vivenciou a seca mais longa da história do Brasil. Lembro que nós perdemos animais, a flora e, principalmente, a esperança de que um dia viveríamos dias melhores.
Todos os reservatórios da região onde morava secaram, as cidades ficaram — literalmente — sem água e a indústria da seca lucrou a todo vapor em cima da miséria e do desespero das pessoas. Mas a Caatinga é um bioma resiliente e forte, assim como as pessoas que aqui vivem, com um poder absurdo de se reinventar e florescer.
Viver no campo é poder experienciar as dores e amores de um lugar que historicamente é negligenciado e escanteado quando o assunto é políticas públicas. Mas, calma! Há também momentos incríveis e proveitosos que não são anulados pelos problemas que nos afligem.
O Tempo
O sol toca as folhas e a pele às 5:30 da manhã, todos os dias, e segue até às 17:30 — 12 horas com temperaturas que se iniciam aos 24°C e vão aos 38°C (se estiver no sertão, por favor, evite atividades à tarde).
Ainda assim, a rotina da minha família começa à 1h da madrugada, quando meus pais e tios acordam para ordenhar manualmente as vacas. Todos os dias da semana, sem direito a férias, feriados e “dias santos”, como são chamados os feriados católicos por aqui. É um trabalho cansativo, doloroso, embora necessário para a sobrevivência.
Mas o tempo não é o mesmo das cidades. No campo a gente não passa uma hora no trânsito congestionado para chegar ao trabalho ou presencia os infinitos estímulos visuais da dinâmica urbana.
Minha avó levanta às 5h, rega as plantas, assiste o programa da Ana Maria Braga às 10:30, almoça e segue sua rotina até às 20h, quando as pessoas da minha casa se preparam para dormir.
Os dias são mais longos, as horas passam mais devagar e a pressa para cumprir as tarefas é reduzida, mas não desaparece.
No campo, podemos olhar para dentro, refletir sobre quem somos no planeta e ter um contato mais forte e intenso com a natureza, já que as cidades, infelizmente, ainda possuem poucos espaços verdes e naturais.
A vida
A vida, apesar de dura, é recompensada com momentos de comunhão e partilha, como nos festejos locais e nas pequenas conquistas do cotidiano. Espaços menores possibilitam um maior contato com as pessoas ao nosso redor e com o ambiente, criando um laço quase que natural, já que todo mundo conviveu juntos durante a infância, juventude e a vida adulta.
Há quem more na zona rural e prefira a vida urbana e há quem prefira fazer o movimento contrário. Esses sentimentos e vontades são mutáveis, dinâmicos e podemos alternar entre esses desejos ao longo dos anos. Ainda assim, o que vemos hoje é um contínuo processo de êxodo rural — por exemplo, a minha avó tem 14 netos, mas apenas quatro continuam morando no campo —, por falta de oportunidades e expectativas.
A questão é que viver é muito mais do que buscar práticas de autoconhecimento e conexão interior. Também precisamos trabalhar, sobreviver financeiramente e buscar os lugares que nos permitam encontrar uma diversidade de meios para estudar e prosperar.
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Ensinamentos
Saber aproveitar os momentos, as pessoas ao nosso redor, acolher e se sentir acolhido é tão importante quanto pensar nas questões materiais. Há dias em que nos perdemos em nossos pensamentos, cedemos espaço demais para nossas mentes racionais e deixamos de viver a pulsão da vida, de sentir o momento como ele é.
Além disso, a simplicidade das pessoas, a cordialidade e o sentimento de companheirismo proporcionam momentos de afeto e conexão com a comunidade. No entanto, as zonas rurais ainda são lugares culturalmente mais conservadores e que ainda reproduzem preconceitos que violentam, simbolicamente, a existência de determinados grupos, como o de pessoas LGBTQIAP+.
Independentemente de mudarmos de cidade, emprego, país ou condição econômica, é importante lembrar e respeitar nossa história, nossas memórias e o lugar de onde viemos — embora haja exceções, já que muitas pessoas cresceram em espaços de violência e intolerância.
Tenho certeza de que isso faz uma enorme diferença quando nos constituímos como adultos e trilhamos nosso próprio caminho. Esteja onde estiver, sei o quanto a minha infância no campo e os aprendizados adquiridos da minha família são importantes para quem sou hoje e como vejo o mundo.
E você? Tem uma história pessoal com o campo que deseja compartilhar também? Conte para a gente nos comentários os aprendizados que a vida no interior já trouxe para você.
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