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Viva no agora
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Nas últimas semanas, tenho lidado com dias de cansaço e respiração curta. Me pego lembrando de um passado recente, em que eu tinha fôlego de sobra para nadar no mar e atravessar a cidade de bicicleta. Há um mês, contraí Covid e sou grata por ter tido apenas sintomas leves, mas fico saudosa do que eu tinha antes de o vírus habitar meu corpo. Depois de um ano longe dos meus esportes favoritos, eu tentava, com os devidos cuidados, retomar a vida lá fora. Mas a hora ainda não era agora. Esticando a perna na tentativa de alcançar o amanhã, hoje me pergunto quando é que voltará a ser… 

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Nestes últimos tempos, quantas vezes não quisemos nos refugiar num passado de livre circulação, abraços e planos que pareciam tão certos? Ou acelerar o filme da vida para a cena em que estamos todos respirando sem medo? Bate uma saudade, né? E, sim, a esperança e a fé são companheiras fundamentais do coração neste momento. Então, perder-se na viagem entre o que já foi e o que ainda está por vir é um jeito de negar o agora e tudo o que ele pode nos ensinar, como me contou a psicóloga e monja Kokai. Nem por isso, a tarefa de ancorar no presente é das mais fáceis, seja durante uma pandemia ou não. “Às vezes, o momento presente não está para se desfrutar, e nossa vontade é de fugir. Afinal, como posso ter serenidade e paz de espírito no meio de uma situação tão caótica?”, questiona. “É um desafio para todos nós. E para mim também.” 

Bem, por mais tentador que seja navegar pela ilusão dos tempos, só o presente pode nos tirar dessa situação dolorosa. No budismo, o nirvana, palavra que define uma mente lúcida e sábia, só existe a partir do samsara, expressão para nomear as aflições mundanas. É a dor que traz a necessidade de transformar o agora rumo a um futuro de menos sofrimento. “O nirvana é o despertar para o aqui-agora, seja lá como for. Não temos para onde fugir”, sintetiza Kokai. 

Por isso, é apenas sentindo a dor que nos atravessa que podemos nos cuidar, acomodar as posições que ocupamos na vida e buscar remédios para o que não anda bem. “Estar no agora dá mais elementos para lidar com dores físicas e emocionais de forma objetiva”, nota Andréa Perdigão, professora de mindfulness e especialista em eutonia, terapia em que o paciente é educado a acessar a sabedoria do próprio corpo. E, nesse acolhimento delicado, nossas feridas vão cicatrizando. 

Mas não é de hoje que nossa sociedade tem dificultado a tarefa de simplesmente ser e estar no mundo. As tantas telas nos puxam para fora do agora o tempo todo. Os incentivos por ambição e consumo exacerbados nos levam a tomar ações em função de algo que ainda nem está aqui. “Se não estamos no agora, onde estamos? Consumindo o tempo como um Cronos devorador, na total inconsciência?”, questiona Andréa. “A inconsciência nunca foi uma boa parceira. Eu escolho sempre a consciência, mesmo que seja a da dor.” 

No budismo, o nirvana, palavra que define uma mente lúcida e sábia, só existe a partir do samsara, expressão para nomear as aflições mundanas. É a dor que traz a necessidade de transformar o agora rumo a um futuro de menos sofrimento. “O nirvana é o despertar para o aqui-agora, seja lá como for. Não temos para onde fugir”, sintetiza Kokai. 

A vida não para

Outra sensação tão comum entre nós nestes tempos é a de que os dias estão iguais, apenas se repetindo um após o outro. Mas será mesmo que tudo está igual? “Na vida monástica, a gente chega a passar dez horas de frente para uma parede, meditando. Aparentemente está tudo parado, mas a verdade é que tudo se transforma o tempo todo”, relata a monja Kokai. 

O problema de uma vida de pouca conexão com o agora é que as transformações seguem acontecendo, mas a pessoa não está presente para perceber. O risco é de os anos voarem como o vento e a gente não saber responder onde esteve esse tempo todo. “Na sociedade, existe um movimento em que a gente vai se distanciando, se distanciando… E não nos damos conta: quando comecei a me perder de mim?”, reflete a monja, acrescentando que fazer o caminho de volta é sempre possível. Assim, experimente fincar seus sentidos no presente e note, a cada dia, a cor do céu, um vento mais frio ou mais quente, um pássaro que canta. Uma dor nova ali, um prazer escondido aqui, um peito contraído, um coração desperto. Um corpo se inundando de emoção ou seco de tédio. Tudo o que surge também desaparece. Como dizem aos quatro ventos: vai passar. 

Por isso, olhar com atenção para esse fluxo é uma prova de que a vida dentro de nós e em todo canto resiste. É um caminho para sair do piloto automático e retomar as rédeas de si. Afinal, quanto mais atentos ao que acontece dentro e ao redor, mais conscientes estaremos para fazer escolhas que nos aproximam de quem somos e de quem queremos nos tornar. “Notar esses detalhes abre um leque de possibilidades e nos leva a viver a vida com frescor”, diz Andréa. Mantendo-nos no presente, podemos diferenciar o que está realmente acontecendo daquilo que imaginamos que possa acontecer. “Isso nos enraíza na experiência de estarmos vivos. A vida é o que somos e onde estamos agora, não onde o medo, a ansiedade e a angústia nos levam.” 

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No centro do tempo 

Em filosofias orientais, o tempo está longe de ser uma linha com começo, meio e fim. Ele se assemelha mais ao curso das águas e é circular. Viver no agora seria, então, seguir o ritmo de cada fase. Tem a hora de semear, de plantar, de crescer, de madurar, de colher. E de ceifar. “Essa crise coletiva é momento de cortar os excessos, de aparar as arestas, para que a vida continue em sua vitalidade”, diz o escritor e ambientalista indígena Kaká Werá. É como uma árvore depois da poda, ele compara. Por fora, parece sem vida, mas, internamente, está acumulando energia para voltar a se expandir no próximo ciclo

No Ocidente, entretanto, nossa tentativa de domínio sobre a natureza e o tempo leva a uma forte resistência a essas fases. Para Kaká, estar em descompasso com o presente coloca em risco a própria saúde e a dos demais. “Quando você vive fora do agora, da percepção desse tempo cíclico, pode querer expandir no momento que é de aparar. Se nós estivermos atentos ao agora, vamos gerar saúde. Conseguiremos fazer essa travessia pelo tempo que for necessário.” 

A arte do agora é considerar o improvável, mas sem se preocupar com isso. Em outras palavras:  podemos  acordar,  observar  o tempo e prever o que faremos naquele dia, mas atentos para mudar de rota se necessário. E abertos a aprender com isso tudo, sem tanta resistência diante daquilo que nos apegamos como o ideal. “O inesperado nos coloca numa outra dinâmica, fazendo-nos perceber coisas novas. É um elemento evolutivo que nos possibilita amadurecer enquanto consciência.” 

Paralelamente a isso, a monja Kokai nos lembra que a vida é um desenrolar de acontecimentos e, portanto, não adianta tentar se agarrar às bordas, como se elas fossem garantia de segurança. Para seguir com o fluxo do rio, é preciso se soltar. “Ao se debater muito, a gente sai machucado. Precisamos compreender isso não só com a mente, mas com o corpo inteiro. Render-se ao presente é curativo, consolador e é um ato de amor e de encontro.” Para essa reunião, a psicóloga recomenda o contato íntimo com a respiração, o corpo e a mente. É nessa presença que desenvolvemos a sabedoria de navegar os instantes. Do momento em que precisamos nos encolher para cruzar o estreito buraco de uma agulha até o de se soltar do outro lado da margem. Aceitar, afinal, não é atitude passiva, de quem desiste. Pelo contrário: demanda muito de nós, uma ação consciente diante da vida. 

Aliás, o presente traz lucidez, palavra e ação  que  acendem  jornadas  longínquas. “Essa é uma das características que nossos ancestrais trouxeram quando chegaram sequestrados na América, juntamente com o corpo, a palavra e seu conjunto civilizatório”, conta Aza Njeri, pós-doutora em Filosofia Africana. Com esse conjunto luminoso, homens e mulheres africanos atravessaram a violência da escravidão, garantindo sua permanência e resistência neste continente. Essa mesma mensagem clareia o que deve ser feito agora: “Uma das características do presente sem a presença é a alienação. A lucidez, filha da presença, diz que responsabilidade e liberdade andam juntas, e é só assim que poderemos sair dessa”. 

“Essa crise coletiva é momento de cortar os excessos, de aparar as arestas, para que a vida continue em sua vitalidade”, diz o escritor e ambientalista indígena Kaká Werá. É como uma árvore depois da poda, ele compara. Por fora, parece sem vida, mas, internamente, está acumulando energia para voltar a se expandir no próximo ciclo.

Reunidos numa pessoa só

A prática do zazen, a meditação sentada do zen-budismo, consiste em prestar atenção à respiração. Quando um pensamento surge, podemos observá-lo passar pela mente como uma nuvem atravessando o céu. Sem nos apegar ao que ele nos diz. 

É função da mente pensar e projetar, e foi isso que nos permitiu avanços ao longo da história. A questão é que somos – literalmente – bem mais do que pensamos. “A mente deixa a gente feito um pêndulo e só resta um corpo solto aqui. Então, a meditação é um descanso, porque só permite ficar aquilo que é necessário e apropriado a cada momento, sem antecipar coisas ou fazer viagens para o passado”, diz Kokai. Com a prática, conta a monja, a mente vai se abrindo, feito a lente grande angular de uma máquina fotográfica, fazendo-nos enxergar a interconexão entre todos os seres, desfrutando melhor do aqui e do agora. 

Mas estar no presente não significa ser emparedado pelo agora. Pelo contrário: é o ponto de vista crucial que nos descortina um amplo horizonte.  “O agora não é o único tempo que importa, mas é o único no qual a ação ocorre”, diz Andréa. “É nele que semeio um porvir. Se estiver ausente, fico inconsciente dos meus desejos, do que me fere e do que fere o outro, do que me alegra e do que ajuda o outro. Só na presença consigo zelar por um tempo bom para todos.” 

A manifestação dos nossos valores, erros e acertos vem do passado – o nosso e o dos nossos ancestrais. Para aprender com o  tempo  pretérito,  é  essencial  observá-lo com os olhos do hoje, sem se prender às antigas glórias e derrotas. Da mesma forma, sonhar o futuro, planejar e plantar são ações do agora. “Somos o conjunto de memórias ancorado em nós e temos um espaço infinito por preencher”, nos lembra Kaká. “Passado, presente e futuro são uma trindade do agora.” 

Pedras para construir o amanhã

Outra bonita imagem é o Sankofa, pássaro africano que volta ao passado para trazer as pedras do ontem para o hoje e, com elas, construir o amanhã. “Que pedras da experiência nós, ancestrais do tempo presente, vamos dar ao futuro quando esse movimento chegar?”, reflete a filósofa Aza. 

Só que o mundo nos traz tantas demandas, e a mente, tantas projeções, que muitas vezes nos esquecemos do mais essencial: a experiência de estar vivo. Respirar, se alimentar, digerir, dormir e acordar. Nos manter limpos e limpar o ambiente que nos acolhe. Cuidar de nós e de quem amamos. Pois a qualidade dessas ações tão básicas são determinantes para o nosso bem-estar. E estão intrinsecamente atadas ao agora. 

Quando a mente levar você para muito longe, experimente atracar seu barco nos cincos sentidos. Com eles, podemos habitar a pele do presente. “O corpo é a nossa principal ponte com o hoje”, diz Andréa. Aproveite para sentir o arrepio do vento, o toque da roupa, a temperatura do piso, o assento da cadeira, o cheiro da manhã, a voz de alguém, o sabor da maçã. Ao lavar a louça, perceba a temperatura da água, o peso do prato. No banho, o contato do sabonete, da toalha. O cheiro do alecrim após regá-lo gentilmente. Você pode fazer pausas ao longo do dia para se resgatar, juntar suas partes e sentir seu pulsar. Troque um daqueles momentos de distração no celular pelo olhar demorado ao ambiente onde você está: como a luz o colore, que cheiro exala? Sinta, também, o que acontece no seu coração quando você faz cada uma dessas coisas, ainda que haja desconforto no começo. Convocar a presença nas atividades cotidianas acalma a mente e é um dos caminhos para que corpo e alma voltem a se encontrar, na dança cósmica que é a vida. 

Já me questionei sobre quanto tempo vou demorar para me recuperar totalmente e quando o mundo estará pronto para me receber em toda a minha saúde e disposição. Mas, a cada dia, essas perguntas ocupam menos tempo do meu agora. Elas têm deixado espaço ao movimento da vida que experimento daqui, neste instante. O corpo desperta mais forte a cada nascer do sol. O descanso concedido quando preciso. O frio pedindo um mingau quentinho para nutrir o organismo. O verdejar das primeiras folhas na horta caseira. O colher, o cozinhar e o saborear. Uma borboleta amarela pincelando o céu. Um inseto vermelho que pousa no teclado no instante em que escrevo estas linhas. Minha respiração se alongando para se juntar aos ventos do que pede este momento.

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