Uma receita de bolo de chocolate
Quando a receita de um bolo de chocolate não dá certo, há muito mais em jogo do que apenas um erro no preparo.
Quando a receita de um bolo não dá certo, há muito mais em jogo do que apenas um erro no preparo
Bolo de chocolate da Arivaldete. É assim que o doce está classificado no caderno de receitas da minha mãe. A página está gasta, amarelada e toda manchada pelo uso. Arivaldete foi, por anos, a secretária do meu pai. Nascida na Bahia, ela havia vindo para a capital paulista ganhar a vida. “Consultório médico, boa tarde”, era assim que ela atendia ao telefone, ligação após ligação. Sempre calma, em um tom de voz baixo e quase arrastado.
De vez em quando, ela e minha mãe passavam algum tempo conversando. Falavam sobre a vida, sobre o tempo e sobre comida. E foi assim que minha mãe pegou uma nova receita para seu caderno já recheado de tantas outras. Mais um bolo de chocolate, pensei. Errada. Não foi “mais um”. Foi “o” bolo de chocolate.
A receita
Entre os ingredientes da receita, água morna e óleo. Talvez seja esse o segredo para uma massa macia e, ao mesmo tempo, fofa. A questão é que o bolo da Arivaldete se transformou no bolo de aniversário de todos nós – meu, dos meus irmãos, dos meus pais. Acrescido de cobertura de brigadeiro e alguns morangos, ele sempre esteve presente em todas as festas.
Receita de família, o modo de fazer está no meu caderno de receitas e também no livro que publiquei há alguns anos, Minha Mãe Fazia, que traz crônicas sobre comida tendo como fio condutor as minhas memórias de infância – seguidas das receitas dos pratos protagonistas de cada um dos textos.
Modo de preparo
A questão é que, recentemente, minha mãe não estava mais acertando a mão para fazer seu tradicional bolo de chocolate da Arivaldete (sim, é um bolo com nome próprio). Ficava sempre solado, seco, murcho. Tentativa após tentativa e ele permanecia assim. Minha mãe testou várias trocas: a marca da farinha, o tempo de cozimento. Não havia nada de errado. “O problema sou eu. Não estou mais acertando”, disse ela, sem tentar esconder o descontentamento. Receita feita por anos, impecavelmente, quando não se acerta, dói feito machucado profundo.
A cozinha sempre foi o território de poder da minha mãe. O lugar onde ela ditava as regras. Minha mãe cresceu nos 40 e 50. Se casou no final da década de 60. Teve a primeira filha em 1970. E, depois, pariu um filho atrás do outro. Três. Tudo agarradinho. Tudo para ela lidar, educar, alimentar, banhar. Sozinha. Meu pai trabalhava por horas a fio. Nunca estava em casa. Acho que minha mãe adoraria sair para trabalhar também. Se arrumar, se enfeitar e ir para algum lugar que não fosse a própria sala de casa. Ela queria ser maior do que aqueles 100 metros quadrados. Ela queria ser.
Uma nova tentativa
Ao longo dos anos, fui percebendo que por trás de sua frequente irritação e impaciência, havia tristeza, incompletude, abafamento. Não acertar o bolo de chocolate da Arivaldete era um golpe forte demais para suportar. Fracasso frente aos seus 79 anos de vida. Quando se está tão próximo da finitude, tudo parece derradeiro demais, dolorido demais, permanente. Ao final, deveríamos colher apenas frutos bons.
Mais um sucesso. Era só isso o que minha precisava. E lá foi ela, aguerrida, tentar mais uma vez fazer o bolo. Família à mesa. Almoço de domingo. “Será que deu certo?”, ela se questionava. A faca passa pela massa do bolo, macia. A aparência ficou linda. E o bolo de chocolate da Arivaldete estava como sempre esteve: maravilhoso. Mais uma medalha para a coleção imaginária da minha mãe. Uma vitória ou uma fatia de bolo cheia de esperança, de vida.
Ana Holanda é diretora de conteúdo da Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.
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