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Os cadernos de receitas da minha mãe
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Registros culinários são também uma forma de contar a nossa própria história

Sempre tive fascinação por cadernos de receitas de família. Desde criança, adorava folheá-los como a um livro. Tudo me encantava: a letra da minha mãe, as páginas amareladas, os ingredientes, os modos de fazer, o nome do prato, as colagens. Eu me perguntava por que minha mãe tinha um caderno tão volumoso se, no final das contas, ela fazia as mesmas coisas?

Rastro da história

Um ritual que adorava, era passar a limpo tudo aquilo. Quando as páginas começavam a cair, as colagens passavam a ocupar espaço demais e não havia mais uma linha sequer disponível, minha mãe definia que era hora de fazer uma nova versão do seu acessório. E então ela começava tudo de novo, literalmente. Mas eram muitas receitas, mais de cem. E então ela convocava todos da família para ajudar na tarefa. Hoje, me encanto quando vejo ali as letras da minha irmã, a minha, a de uma prima… e, claro, a de mamãe. É como um rastro da história da nossa família. Todos ali, presente, em um simples caderno de receitas.

Não é só um acessório

Essa semana, pedi que ela me emprestasse algumas dessas relíquias. Páginas caindo, colagens também. Manuseá-lo é lidar com uma preciosidade. Sei que a maior parte das pessoas não percebe isso. Há algum tempo, nem eu mesma percebia. Os cadernos eram apenas algo que eu gostava, objetos pelos quais mantinha afeto e apreço. Até que, movida pela curiosidade, comecei a pesquisar o termo “caderno de receitas de família” no Google. E, para minha surpresa, havia pessoas tão encantadas quanto eu por esse acessório. Mas uma delas me chamou a atenção: a historiadora Débora Oliveira. Fuça daqui, fuça dali, consegui o contato dela, que generosamente topou conversar comigo. Não eram tempos de pandemia e, por isso, combinamos o encontro em um café – e o que era para durar uma hora, perdurou por uma tarde inteira.

caderno de receitas da minha mãe Registros dos anos

Débora sempre foi uma apaixonada pela comida. Sentimento que nasceu na cozinha da casa da avó. E com ela veio o interesse pelos cadernos de receitas de família. O assunto foi tema da sua tese de mestrado e deu origem ao livro Dos Cadernos de Receitas às Receitas de Latinha (editora Senac). Foi ela quem me contou que o acessório carrega informações que vão muito além dos modos de fazer. Cada item conta uma história, que tem relação com as mudanças sociais e econômicas de toda uma geração. As receitas de latinha surgiram por exemplo, com a ida das mulheres para o mercado de trabalho. E, assim, como uma forma de facilitar a rotina – e de ensinar como usar aquele produto novo chamado creme de leite ou leite condensado. Os nomes das pessoas ao lado de cada receita? O meio social de cada uma. O livro de Débora é uma preciosidade porque nos mostra como algo tão simples — às vezes esquecido no fundo da gaveta da cozinha — carrega não apenas as nossas histórias, mas também a de toda uma sociedade.

Eu, que já gostava tanto do caderno de receitas da minha mãe, passei a apreciá-lo ainda mais. Dias desses, passei por eles mais uma vez. Não para checar uma receita de um bolo qualquer, mas para me encher de certezas – as minhas certezas. E me lembrar — por meio daquelas páginas amareladas — de onde eu vim, quem sou e para onde estou indo. Não é só um caderno, nunca foi. São registros dos anos, que guardo em um lugar especial dentro de mim.


Ana Holanda é diretora de conteúdo da Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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