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Um centímetro de cada vez: a oportunidade escondida nos desafios
Micheile Henderson
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Há dias em que acordo disposta a ler de uma vez por todas a última página da minha história, fechar meu livro e guardá-lo em um desses cantos invisíveis do apartamento. Cantos que empoeiram com o tempo, cantos mágicos que fazem objetos desaparecerem para sempre.

Levanto quase surda: as vozes da minha mente discutem o tempo todo sobre quase tudo. Passo café para cada uma delas, ofereço uma cadeira para que se acomodem e descansem. Todo dia é um pedido de socorro: eu apenas quero estar em paz, pelo amor de Deus!

Quando um a um dos valentões internos se aquietam, é hora de começar o dia. Preciso aproveitar cada minuto antes de ser revisitada pelo desassossego dos gritos, depois que acaba o café. Levo a sério novas chances, por mais que nem sempre eu as aproveite: conforta saber que elas estão ali, no sol que levanta mais um dia.

Hoje tenho mais uma oportunidade de esquecer que fui ferida por tiros de canhão e bisturis, e fazer o parto de quem eu desejo ser no futuro. Mas pequenos inconvenientes me dizem que ainda não é a hora, e mais: me lembram de que para encerrar ciclos grandiosos, não basta apenas a minha assinatura. 

Aprender a cantar

Abro o armário para vestir um dos papéis a serem desempenhados no meu dia, e sem buscar, meus olhos encontram lenços. Eles estão amarrotados nos cantos, esses escuros onde tentamos nos esconder de nós mesmos. E de repente eu, que ando querendo fechar o livro, volto a ver a primeira página.

Fecho os olhos e me assisto de longe, imperfeita, inconstante, mas com esperanças. Até hoje não acredito que já estive sem nem um fio de cabelo, e sobrevivi cantando. Cantei para o tempo e suas armadilhas, para o medo e para o caminho. Cantei para pensamentos vis que tentaram roubar meu lugar no palco, mas não conseguiram. Eu apertei forte meu microfone, e cantei. 

Hoje estive no hospital para fazer alguns exames e vi mais gente, literal e metaforicamente, cantando. Eram pacientes de câncer de laringe, que haviam retirado uma parte do órgão, ou ele por inteiro. Eles formaram um coral e se apresentavam no saguão, para quem chegasse. Eu estava atrasada, mas a necessidade vital e humana de receber amor freou meus pés no chão.

Ali fiquei por alguns minutos, curvada diante de toda a dor que um dia se cansou de ser dor e virou canção. Alguns pacientes usavam uma prótese no lugar da laringe, para emitirem som. Ao fim da música, eu aplaudi com meu coração: o mundo um dia tentou calá-los, mas eles escolheram ser canto.

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Aprendi que para cantar com certa afinação é preciso dizer “não” para muitos entraves disfarçados de facilidade. Ao longo dos meses em que estive careca, contei para mim mesma a história de que a qualquer sinal de crescimento que suportasse o peso de fios alheios, eu emendaria um aplique.

O tempo passou, o cabelo ganhou certo comprimento, mas eu já não era a mesma. Tenho me desmontado e me reconstruído sem parar, às vezes mais de uma vez ao dia. E uma das minhas novas versões me pediu para aprender a esperar. Querer que tudo aconteça no meu tempo é como fazer uma dieta maluca na alma: ela fica esbelta, mas enfraquece. 

Foto: Marcela Varasquim/ Arquivo pessoal

Foi-se o tempo em que eu olhava para os lados e desejava ter outras cores, outras formas, outros caminhos. Hoje quero ser apenas eu, com meus acertos e desvios. E não peço para que a vida seja mais fácil, mas para que eu tenha mais habilidades de enfrentá-la. Ter paciência é um dos meus objetivos nessa jornada dolorosa de se tornar humano, e esperar que o cabelo cresça natural e lentamente é minha grande oportunidade de desenvolvê-la.

Cada centímetro a mais que o espelho mostra, é um sorriso que abraça o coração. Tenho motivos para me alegrar todos os meses, a cada vez que vejo os fios maiores. Se tivesse colocado alongamento, a felicidade duraria apenas uma hora.

No dia seguinte precisaria encontrar mais atalhos para alcançá-la, e acabaria entrando na armadilha de subir a montanha inacabável da busca pelos prazeres. Sinto, agora, que tenho a felicidade em minhas mãos: distribuí-la em doses homeopáticas é minha forma de nunca perder a chance de sorrir. 

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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