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O que muda ao nos depararmos com a finitude da vida
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Sei que sou correnteza apressada indo para um lugar que nem o próprio rio conhece. Sou viajante que desembarcou sem bagagem e, sem bagagem, retornará para outra estação. Às vezes me perco no caminho e penso que sou permanência e longa estadia. Mas, a vida, que não se cansa de ensinar o abecedário quantas vezes for preciso, me obriga a ler pela milésima vez seu primeiro mandamento: “você é passagem”.

Dias atrás, meu corpo indelicadamente me lembrou de que tem prazo de validade, e a data dos seus últimos dias de funcionamento não vem escrita na embalagem perecível da pele. Durante uma consulta, a médica mostra meu novo exame de sangue com números acima dos valores de referência, e é preciso investigar uma possível lesão no fígado. Instantaneamente meus olhos se fecham e se espremem atrás de uma tela preta de dor.

O tempo das ampulhetas e dos calendários não é o mesmo que cronometra meu coração. Caminhei estradas inteiras dentro de mim, nadei mares desconhecidos e escuros, derreti meus sonhos sem nem mesmo saber acender fogueiras.

Nasci com cada sístole, morri nas diástoles. Mas no relógio, não se passou nem um segundo. Reconhecer a fragilidade do material de que somos feitos é um filme que se revela aos poucos para o coração. E as primeiras cenas não são bonitas.

O medo

Abro meus olhos, após a uma curta – e imensa – peregrinação interior. Tento enxergar a médica embaçada atrás do mar que encharca minha pupila e passeia em meu rosto. Preciso urgentemente secar cada uma dessas ondas e estender as mãos para pegar pedidos de exames. Não há tempo para chorar o medo da falta de mais tempo.

A vida corta minhas falsas asas e me convoca a voar de verdade, esconde meus chinelos em uma estrada de espinhos e me ensina a cuidar das minhas próprias feridas. Tudo ao mesmo tempo. Preciso me levantar da cadeira e atender aos chamados da fortaleza. Quando ignoro suas tentativas de contato, ela aparece presencialmente, sem convites, empurra meus ombros e me fez cair em alto mar longe de qualquer pedaço de terra firme. Justo eu, que ainda estou aprendendo a nadar.

O medo da progressão da doença não traz junto um atestado com direito a ficar debaixo das cobertas até que tudo se resolva. Pelo contrário: é preciso informar as horas para quem pergunta na rua como se estivesse tudo bem, passar as compras no caixa do supermercado como se fosse mais um dia comum. É preciso esboçar sorrisos durante piadas para fingir ter prestado atenção, participar das conversas e até reclamar que o tempo está mesmo muito abafado, para simular que se importa. Mas, por dentro, o coração só pensa se haverá um caminho, seja ele pelo norte ou pelo sul.

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– “Feliz Ano Novo, você está com câncer”

Afundar faz parte de estar vivo

Pensar que somos mortais dói, eu sei. Mas, ao mesmo tempo, não conheço remédio melhor para a alma. Quando lembro que meu “pra sempre” acaba, cada dia é uma oportunidade única para se curar.

Eu descanso meu peito na rede doce do perdão, enxergo mais beleza sem mudar a paisagem, flutuo leve como a folha que se desprende da árvore para seguir seu caminho.

A faca que antes feria, agora me ajuda a cortar o pão; a raiva do motorista lento logo à frente vira um encontro bonito com a paciência; o apego escapa pelos dedos e deixa minhas mãos livres para sentir o mundo. Quando lembro que minha carne apodrece, ninguém me convence de que preciso ter um corpo impecável. Ter um corpo impecável, aliás, não faz mais sentido. Ter um corpo que atua à serviço da minha missão de alma, faz.

Quando a vida tira a caneta da minha mão e me diz que não sou a escritora principal, dá medo. E ao mesmo tempo, é como liberar uma mochila pesada das costas. Eu sou comandante da minha embarcação, mas não sou dona do mar. Não controlo a intensidade das ondas, nem a fúria das ventanias. Afundar faz parte de estar vivo.

Transformando espinhos em flores

Nós nascemos únicos, mas muitas vezes morremos sendo peça repetida. Derrubar uma casa para erguer quantas outras forem necessárias cansa – não é fácil ser empreiteiro da própria vida. Às vezes, é mais simples camuflar-se na paisagem e, por medo de ser roubado, nunca revelar seus tesouros. Às vezes, é melhor deixar os planos de ser feliz para depois dos quarenta. Dói menos fingir que somos para sempre.

Dói menos anestesiar os pés para suportar o chão quente. Mas, enquanto preferirmos virar o rosto para não ver a ferida, ela parecerá curada – mas seguirá doendo. O controle do câncer me dá a oportunidade de estar sempre atenta à minha finitude: não para enganar a vida, mas para não perdê-la de mim.

Duas semanas depois, os exames concluíram que não há sinais de doença no fígado. Entretanto, agradeço por receber na minha porta esse buquê de espinhos. Deu trabalho para transformar em flores e, justamente por isso, ninguém as rouba de mim.


*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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