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Brilho eterno de um espírito com memória
(Foto: Laura Fuhrman/Unsplash)
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E se você acordasse amanhã sem memória de nada que aconteceu no dia anterior? Ou da semana anterior? Como você viveria seu dia de hoje se amanhã você não lembrasse nada do que viveu antes?

Isso aconteceu com minha mãe depois que sofreu três AVCs isquêmicos quando ela tinha 42 anos. Entre outras sequelas, as áreas mais afetadas foram a visão e a memória, principalmente a memória recente.

Ela conseguia lembrar de sua infância e de fatos importantes do passado, mas nada da memória recente.

Eu podia chegar 100 vezes por dia para conversar com ela e contar a mesma piada. No entanto, ela me recebia como se não tivesse me visto há meses e daria risada da mesma história, todas as vezes, como se eu nunca tivesse contado.

Poderia deixar tocando uma música sem parar o dia inteiro, porque ela a ouviria como se fosse a primeira vez assim que a música acabasse e recomeçasse.

Quando ela começou a voltar para a consciência da pessoa que ela era, passou a ficar muito deprimida pois passou a se dar conta das suas deficiências. Constantemente, os momentos depressivos levavam a crises de enxaqueca.

Lembranças gravadas no espírito

Nós então começamos a fazer o máximo para animá-la, distraí-la, promovendo experiências que a fizessem sentir-se bem. Ela lembraria em seguida?

Não, mas a sensação de como a fizemos sentir duraria horas. Se ela tivesse um momento divertido, em seguida ela já não lembraria do que gerou a felicidade, mas ela se manteria alegre por horas. E sem dores por dias.

Para nós, era o que importava. Se você desse um presente, ela esqueceria em seguida. Ela não lembraria de uma comida gostosa que você fizesse. Se a levasse num passeio bonito, ela nunca mais lembraria.

O que importava era o quanto ela conseguia acumular felicidade em seu espírito, e não em seu cérebro. E quanto de serotonina, endorfina e ocitocina nós conseguíamos fazê-la produzir.

A memória alegre do diário

Um dia, em casa, achei o diário de infância da minha irmã. Era azul, tinha um cadeado na frente e histórias inocentes fofas. Quando minhas piadas e histórias não funcionavam mais para animá-la, eu lia o diário para ela, que ria muito. Ela se recuperava da dor e da depressão em minutos.

Dessa forma conseguíamos tirá-la da cama, ela comia e ficava bem por algumas horas. Perdi as contas de quantas vezes li esse diário.

Lembranças de uma criança… Que salvaram a mãe dessa criança, que virou uma criança quase sem lembranças.

Hoje, 25 anos depois, ela melhorou. Continua cheia de limitações, inclusive de memória. Ainda conta a mesma história (sempre de sua infância) algumas vezes por dia e nós continuamos a ouvir como se fosse a primeira vez.

Isso tudo mexeu comigo num lugar muito profundo. Além de ter me feito rever toda a minha saúde e hábitos alimentares, que salvaram minha vida antes que eu pudesse ter o mesmo destino, me fez viver o “agora” intensamente.

Fez com que eu viajasse o mundo. Fez com que eu corresse atrás e realizasse todos os meus sonhos. Desde então eu vivo cada dia como se pudesse ser mesmo o último. Não deixo passar nada.

A única certeza que a gente tem é que um dia será mesmo o último. Portanto, eu quero ter vivido tudo que meu espírito precisa. Quero ter realizado meu propósito. E dentro desse propósito, desvendado e realizado outras ramificações dele.

Preocupações com minha memória

Confesso que às vezes me preocupo com minha memória, mesmo saudável. Esqueço coisas se eu não anotar. Desço a escada para pegar alguma coisa na sala, chego embaixo, abro a geladeira, o celular toca, retiro a roupa do varal, vejo uma planta com folhas secas, vou molhar as plantas. O que vim fazer aqui embaixo mesmo?

Tomo banho e me inspiro de ideias. Escrevo músicas belíssimas e textos inteiros embaixo da água. Tenho conversas importantes imaginárias dizendo tudo aquilo que na hora de dizer, não me veio nada.

No entanto é só fechar a torneira, que tudo vai ralo abaixo: esqueço completamente.

Hoje com a internet somos bombardeados de informação o tempo inteiro. Somos também invadidos por sentimentos que vêm junto dessas informações.

Nosso cérebro não está preparado para tanto. A geração de nossos pais e avós obtinha notícias no jornal que chegava na porta todas as manhãs, no rádio, ou na televisão.

Tenho uma memória seletiva, também. Como forma de defesa, meu cérebro se encarrega de deletar questões dolorosas do meu consciente.

Ter memória é ter saudade

Meus pais vieram nos visitar fim de semana passado. Em 20 anos, foi a primeira vez que vieram do sul para São Paulo. Fizemos de tudo para que se sentissem amados e tivessem um fim de semana inesquecível. Não inesquecível para suas memórias mentais. Mas que se sentissem felizes e esse fim de semana ficasse tatuado nas lembranças de seus espíritos.

E a saudade? Sem memória, não teríamos saudade. A saudade doída é a saudade boa. Eu amo a saudade que tenho do meu filho cachorro que se foi há cinco anos. Ela o mantém vivo em mim.

Mas agradeço a amnésia que tenho de saudades que machucaram e hoje nem lembro quais foram.

Nosso cérebro pode esquecer, porque como parte de nosso corpo, ele vai se desintegrar um dia.

O que importa são as lembranças tatuadas em nosso espírito. Essas vamos levar pra sempre. Vão também ficar marcadas no DNA que serão passados para frente por gerações.

E vão alimentar a luz da evolução nas lembranças de nosso espírito.

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