Foi durante os dias que passava na praia do Bonete, em Ilhabela, que o administrador paulistano Rodolfo Vilar percebeu que os moradores da pequena comunidade viviam uma realidade muito diferente da sua. Especialmente em relação à conservação dos alimentos.
Ele cresceu entre a capital paulista e alguns finais de semana em que fugia para o litoral do estado para pescar com os amigos. Um hábito adquirido desde a infância.
Na maioria das vezes, preferia se hospedar com os companheiros de pesca na casa dos locais. Ali, a energia elétrica é um recurso escasso.
Desde 2017, um projeto de compensação ambiental ajudou a instalar placas solares de modo a fornecer energia para cerca de 250 famílias que vivem na região.
Antes, porém, as noites escuras, iluminadas apenas por lampiões, eram uma irremediável lembrança de que havia – e há, ainda hoje – pessoas que vivem sem luz elétrica, sem televisão e mesmo sem geladeira para conservar seus alimentos.
Na confluência de culturas, surgem as soluções
Foi esse ponto, especificamente, que gerou uma grande consternação em Vilar. Como era possível uma vila de pescadores, com tanto acesso a peixes frescos, ter que contar com o alimento diário sem poder pensar muito se iria ou não tê-lo no prato nos dias seguintes?
“Eu via muito desperdício porque as pessoas não tinham como conservar aqueles peixes”, conta. Ele começou então a pensar em como ajudar a comunidade a desenvolver técnicas de conservação para garantir alimentos por mais tempo.
“Era algo que pudesse dar a eles alguma ideia de autonomia alimentar. Civilizações inteiras se desenvolveram a partir dessas técnicas e pensei que poderia ajudá-los de alguma forma semelhante”, explica.
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Uma forma ancestral de conservar a comida
A ideia de focar na defumação era a mais fácil: por muitos anos, todas as casas da região tiveram fogão a lenha. Isso ajudou a fazer com que a prática de utilizar a própria fumaça como uma forma de evitar contaminações de microrganismos fosse quase automática.
Depois dos momentos que passava com os moradores do Bonete, ele ganhava alguns peixes defumados que levava para sua casa, em São Paulo, e oferecia para os amigos, em jantares e reuniões.
“As pessoas sempre gostavam muito e queriam mais. Até que um dia, para saber qual era qual, começamos a colar uns esparadrapos nos peixes, na parte detrás da escama”, conta.
Escreviam o nome do pescador, o local da pesca, a lenha utilizada na defumação (entre vara de facho, caxeta, Guapuruvu) e comparavam os sabores.
Da informalidade a uma iniciativa que gera renda
O que começou como uma iniciativa informal de ajuda aos pescadores, ainda em 2004, foi se desenvolvendo até se tornar um projeto maior, hoje batizado de A.MAR (@projetoa.mar).
Constituído oficialmente em 2016 por Vilar e seus sócios, o diretor de e-commerce Ciro dos Reis e o pescador Alex de Jesus, conta até mesmo com laboratórios para melhorar os processos de conservação de pescados e outros alimentos.
O foco é aprender com técnicas usadas por antigas civilizações – do Império Romano ao Japão ancestral, passando pelos países nórdicos – para preservar e tirar melhor proveito dos peixes.
Entre os produtos desenvolvidos, há salsichas de polvo, linguiça de tainha com fécula de mandioca e uma copa de atum – tudo feito à base de pesca de manejo sustentável com animais locais.
A cadeia de valor sustentável da pesca artesanal
Eles compram o que os caiçaras pescam e aplicam as técnicas de preservação aos peixes e frutos do mar. “O projeto não é responsável por resolver a vida de nenhuma família, de nenhum pescador. Mas, com certeza, há uma contribuição de visibilidade da importância da pesca artesanal e ajudar a complementar a renda”, ele diz.
Também é uma forma de pesquisar e incentivar práticas muito antigas de salga (como no caso do bacalhau, em Portugal), de fermentações (como os caldos de peixe nos países asiáticos) e de charcutaria (como a ficaccia, um tipo de salame de atum com porco e pistache da Sicília e ilhas mais pobres do Mediterrâneo).
Vilar diz que o projeto não faz nada de autoral – ainda que se permita um pouco de criatividade, como no caso de combinações de ingredientes inusitadas algumas vezes.
“Tudo o que a gente faz é apoiado em livros, bibliografia e resgate do que já era feito antigamente, tentando reproduzir da forma mais tradicional. A gente organizou o estudo de técnicas antigas para catalogá-las e
aplicá-las nos produtos”, conta.
O que fazem só é vendido em pequenas feiras artesanais e de apoio aos pequenos produtores, sem grandes pretensões comerciais.
“Não há nada de essencialmente novo no que fazemos, estamos apenas a olhar para o passado para mostrar a amplitude que o mundo da pesca artesanal pode atingir”, diz.
O retorno às origens dos alimentos
Olhar para o passado tem sido uma boa maneira de moldar como – e o que – valorizamos no panorama alimentar hoje.
“Técnicas de fermentação milenares, por exemplo, voltaram até aos cardápios dos melhores restaurantes do mundo”, explica Jorge Bretón, chef de cozinha e professor do Basque Culinary Center, na Espanha.
“Hoje, usamos técnicas como o levain [fermentação natural do pão] em nossas casas como se fosse algo recém-descoberto, sem lembrar que as pessoas já comem dessa forma há séculos”, aponta.
Para ele, vivemos um momento de tentar entender de onde viemos em termos alimentares, algo que uma nova obsessão com a origem dos alimentos só fez aumentar.
Como exemplo deste novo momento, Bretón aponta o uso do garum em grandes restaurantes. Uma iguaria nos tempos antigos, esse molho de peixe fermentado era originalmente feito em toda a bacia do Mediterrâneo.
A tradição remonta a milhares de anos, quando era considerado um dos ingredientes mais valiosos para fenícios, gregos e (principalmente) romanos. Trata-se de um condimento de molho de mesa tão amplamente utilizado como ketchup ou molho de soja hoje em dia.
O garum era feito apenas com pequenos peixes eviscerados, como sardinhas e cavalas, salmoura e tempo para fermentar (já que o processo podia levar quase um ano!).
Ancestralidade também é atual
Hoje, restaurantes como o Noma, na Dinamarca (considerado um dos melhores do mundo), usam a técnica em seus pratos. Porém, encurtando tempos e buscando novas maneiras de fazê-lo, como na adoção do koji, por exemplo, um tipo de fungo que agiliza o processo.
Técnicas milenares para fazer massas, molhos e outras receitas também têm sido mais adotadas, do kimchi coreano aos moles mexicanos – criados por civilizações pré-hispânicas.
“Por muito tempo, a gastronomia esteve com os olhos voltados para o futuro, em tentar inovar em técnicas, processos e ingredientes. Hoje, estudamos a inovação que o passado nos relegou, aprendendo com ele a ter uma nova relação com os alimentos“, afirma Bretón.
Descolonizando as raízes culinárias
Uma visão mais descolonizadora da comida também tem ajudado nesse processo de resgate. À medida que cozinheiros de muitos países decidem estudar melhor sua história, suas raízes, conseguem trazer de volta à mesa ingredientes e métodos que os processos de colonização e, mais recentemente, de globalização, relegaram ao ostracismo.
No Peru, os chefs Virgilio Martínez e Pía León, casal à frente dos restaurantes Central e o MIL, têm mostrado o quanto de inovação há no conhecimento secular.
Nos últimos anos, eles passaram a organizar expedições multidisciplinares para percorrer o interior do país. Viajam da floresta amazônica aos altiplanos para conhecer mais sobre a própria história culinária e revelar o que ficou encoberto pelo tempo.
Embora já utilizasse os ingredientes da região, foi nessas incursões com grupos de arqueólogos e antropólogos que descobriram alimentos nativos de difícil acesso e que acabavam restritos às pequenas comunidades que vivem na região.
O resgate de conhecimentos da cultura alimentar
Hoje, mantêm na zona de Cuzco um centro de investigação de alimentos e técnicas andinas, chamado Mater Iniciativa, que resgata conhecimentos históricos.
“O projeto é o foco do trabalho que fazemos nos restaurantes. Ele prioriza a busca por ingredientes, técnicas e conhecimentos sobre nossa própria cultura alimentar”, diz Martínez.
O centro foi erguido no complexo arqueológico inca a 3.500 metros. Ali, povos andinos puderam se aproveitar dos diferentes microclimas para suas experimentações agrícolas no decorrer dos séculos. O local serve de pesquisa para técnicas passadas de geração para geração entre os povos das montanhas.
É o caso dos cozimentos feitos nos huatia, um tipo de forno feito de pedras. Nele prepara-se os tubérculos e raízes com as cinzas e o calor da brasa que aquece o solo.
Ou do uso de dezenas de espécies de batatas desconhecidas do nosso paladar atual por terem sido esquecidas com o tempo. “Queremos ir mais a fundo em apresentar nosso território, a interpretação que fazemos da paisagem que temos ao redor, de sua gente e sua história”, explica o chef.
“A forma de inovarmos é contar sobre o nosso legado, sobre nossos ingredientes que estão aí para serem resgatados”, ele afirma. Uma espécie de olhar ancestral, mas agora voltado ao futuro.
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RAFAEL TONON é jornalista e escritor e acredita que a ancestralidade é a maior inovação da gastronomia atualmente. @tononrafa
Conteúdo publicado originalmente na Edição 244 da Vida Simples
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