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Trabalhar com imigrantes: uma jornada de afeto e transformação
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“Talvez seja preciso ser um tipo especial de pessoa para provocar uma grande mudança que se espalhe por toda a sociedade e afete milhões de vidas, mas…”. 

Lembro-me de ter ouvido essa frase há quase uma década enquanto assistia ao inspirador documentário “Quem se importa“, dirigido pela brasileira Mara Mourão. O filme retrata pessoas comuns que se revelaram verdadeiros visionários ao encontrarem soluções brilhantes para grandes problemas que afetam a humanidade.

Enquanto subo as escadas do bloco de Educação e Humanidades da PUCPR, em Curitiba, essa frase ecoa em minha mente. E o que mais me encanta nela é o seu desfecho:

 “…mas cada um de nós pode contribuir para uma mudança positiva em algum lugar. Todos nós somos capazes de transformar o mundo.”

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A ideia de que não preciso ser brilhante para ajudar o planeta ou alguém em alguma coisa me enche de coragem enquanto venço os últimos degraus. Viro à direita e entro num corredor cheio de estudantes. Deve haver uns 100 deles. Ainda não se organizaram nas salas. Conversam. Não sei sobre o que falam. Trago a pasta de trabalho ao peito e me encolho para não atrapalhar as panelinhas, que falam um idioma diferente, às vezes dois ou três.

Avisto a garota russa conversando com um rapaz afegão. Eu sabia que ele falava pashtun, mas até agora não imaginava que era fluente em russo. 

Mais adiante, um grupo de haitianos fala baixinho. Identifico o creole e talvez algo em francês. Pelo “bom dia” confiante, percebe-se que já estão no Brasil há algum tempo.  

Também tem gente do Congo, do Timor Leste, do Marrocos

Além deles, há bastante falantes de espanhol. A maioria vem da Venezuela, mas também tem pessoas do Peru, Colômbia, Cuba… 

Por fim, qualquer pessoa que tenha acompanhado as notícias internacionais nos últimos anos sabe o motivo da presença dos sírios. O mesmo se aplica aos ucranianos recém-chegados.

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Toda essa gente está aqui em busca de uma vida melhor, escapando de conflitos armados, perseguições decorrentes de opiniões políticas, situações políticas e de vida degradantes, ou simplesmente alimentando a esperança de encontrar melhores oportunidades de trabalho. 

Eventualmente, uma pequena mulher surge ziguezagueando entre eles, despachada, passando instruções, contando novidades, distribuindo sorrisos… É Carmen Koppe, a coordenadora da coisa toda.  

Ela nos lembra que é horário de arregaçar as mangas. 

Puxo o trinco de uma das portas que se dobram para fora, anunciando o fechamento da minha sala. O formigueiro humano se dispersa, ocupando as demais salas. 

Gradualmente, todas as portas se fecham.

É mais um dia de aulas de português para pessoas em situação de refúgio e migração do Programa Lampedusa, uma iniciativa de ajuda humanitária que acontece na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, a PUCPR. 

Sou parte do grupo de professores voluntários que atuam no programa. Estou aqui porque, ao longo de minhas experiências mundo afora, pude conhecer pessoas para as quais viajar não foi uma escolha, e isso teve um efeito significativo em mim. Fiquei profundamente comovida ao perceber que, para alguns, ir embora de casa e seguir em frente é uma questão de sobrevivência e garantia de existência. Desde então, eu sentia vontade de ajudá-las nessa jornada.

Pessoas reunidas sorrindo em uma mesa com sorrisos, comida e bandeiras juninas. Imigrantes

Foto: Arquivo pessoal

Ilha de Lampedusa e os imigrantes: porta para o sonho europeu?

Em 2018, na PUC-PR, em Curitiba, nasceu o Programa Lampedusa*, com o objetivo de acolher imigrantes, integrá-los à sociedade brasileira e ampliar suas oportunidades no mercado de trabalho.

No entanto, com a chegada da pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento, o programa enfrentou momentos difíceis e quase chegou ao fim. Porém, em 2021, retornou com toda a força e atualmente beneficia mais de 200 pessoas.

O nome não foi escolhido à toa. Trata-se de uma homenagem à esperança: há décadas que pessoas escapando de conflitos e vivências traumáticas em seus países chegam à Lampedusa — ilha italiana que fica no mar mediterrâneo a meio caminho entre África e Europa. Elas buscam uma nova vida e enxergam Lampedusa como porta de entrada para uma promissora Europa. Contudo, a situação transformou-se em uma crise humanitária sem solução até agora.

uma ilha com areia branca e alguns arbustos ao redor. há pessoas tomando banho e o ar com água límpida ao redor. imigrantes

A ilha de Lampedusa é um dos principais pontos de chegada de pessoas vindas da África à Europa. Foto: Enrica Tancioni

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Um pequeno exército de voluntários movidos por amor 

Sob a enérgica batuta de Carmen Koppe, que é especialista em língua estrangeira, e a participação dos departamentos de Idiomas, Identidade e Letras, o programa Lampedusa conta com um pequeno exército de voluntários apaixonados. São professores e assistentes. 

Os assistentes desempenham diversas funções, como acolher os imigrantes, realizar atividades de nivelamento, registrar presenças, distribuir lanches durante o intervalo e auxiliar os professores em sala de aula. Nessa Torre de Babel, qualquer conhecimento de um idioma estrangeiro pelos voluntários é valorizado. 

Mas o amor pela causa também é essencial para fazer dar certo.  

É Carmen quem se debruça sobre pesquisas desmembrando e montando materiais para que os professores possam trabalhar. Às vezes tenho a impressão de que não dorme. Por WhatsApp, envia links de programação cultural, ações sociais e oportunidades de trabalho… Tudo o que possa melhorar a vida, a renda e, especialmente, a sensação de um pertencimento tão desejado pelos novos brasileiros.  

Com recursos limitados e batalhando para montar à mão um método de ensino a imigrantes de variadas origens que parece ainda não existir no Brasil — afinal, há poucos anos é que o país entrou na rota das migrações provocadas pelas crises do século 21 —, Carmen lembra uma figura da qual se fala em “Quem Se Importa”: o empreendedor social. 

“Um empreendedor social é alguém que enxerga esperança onde outras pessoas não veem nenhuma; enxerga possibilidades onde não há”, diz Karen Tse, advogada de direitos humanos retratada no documentário. “São visionários em muitos sentidos: têm imaginação e esperança, embora sejam infinitamente práticos e detalhistas”. Como a pequena Carmen. 

Lições que aprendi como professora de imigrantes e refugiados

  • É grandioso estar onde nossa presença é querida e verdadeiramente aceita

Dizem muito por aí “não te demores em lugares onde não te cabe estar”, seja em um relacionamento pessoal ou de trabalho. É uma delícia estar onde podemos potencializar e dar significado àquilo que fazemos bem. Joaquín Leguía, um empreendedor social peruano que criou um projeto inspirador para orientar jovens a serem agentes de mudança na construção de um mundo melhor para todos os seres vivos, uma vez afirmou que a autoestima saudável vai além da aparência, posição social ou nome, e está ligada à capacidade de gerar bem-estar para os outros seres vivos.

  • Pessoas querem sentir que pertencem a uma comunidade

“Pertencimento” é uma palavra que está na moda, mas e daí? Sentir-se parte de um lugar e de uma sociedade — de uma maneira tão verdadeira que possamos influenciar os rumos desse espaço e ter nossos sentimentos e opiniões levados em consideração — é uma das experiências mais encorajadoras e transformadoras para um ser humano. No programa Lampedusa, a entrega do cartão universitário é um momento importante na vida dos alunos. Somado ao aprendizado de expressões simples do cotidiano (que permitem uma comunicação igualitária), nasce o sentimento de pertencimento, que sustenta e reconforta.

Diversas pessoas reunidas em um auditório sorrindo e posando para a câmera. imigrantes

Foto: Arquivo pessoal

  • Uma das coisas mais valiosas que uma pessoa pode dar à outra é um pouco de seu tempo

Parar para ouvir alguém é sobre nos tratarmos como iguais valorizando a história um do outro. Isso nos faz enxergar além da superfície. O resultado é que ganhamos conhecimento e afeto. “A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixa cativar”, como está escrito no livro “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry? Sim! Mas o que se ganha em troca compensa. 

  • Quão limitados se tornam nossos horizontes quando outras línguas e culturas não são respeitadas

Por trás de cada barreira do idioma há personalidades e histórias brilhantes. Dar aula a pessoas em situação de migração e refúgio exige a percepção de que estamos diante de adultos com profissões e valores diversos, além de trajetórias de todos os níveis de dificuldade. Resistir à tendência de “infantilizar” as pessoas só porque elas ainda não têm afinidade com uma língua e uma cultura é uma prova de respeito e humildade.

Isso me faz lembrar de uma frase divertida e sensível dita pela atriz colombiana Sofia Vergara (uma das pessoas mais autênticas no mundo das celebridades) em seu papel na série norte-americana “Modern Family”: “Você sabe como é frustrante ter que traduzir tudo na minha cabeça antes de falar? Você tem ideia do quão inteligente eu sou no meu idioma?”. Obrigada, Sofia, por abrir nossas mentes, às vezes tão fechadas.

  • Como é libertador e produtivo admitir quando não temos todas as respostas ou não sabemos o que fazer

Aprendi com os estagiários estudantes de Letras, pessoas mais jovens que eu, a como melhor conduzir uma aula e descobri que não há problema algum em não saber de tudo. Isso me libertou da autocobrança e do peso da expectativa do outro sobre mim. Ainda assim, não aconteceu fácil, nem de repente, mas valeu todo o caminho percorrido até aqui. 

O que define o valor de uma pessoa?

Muitas vezes, medimos realização e sucesso pessoal com base no lucro e na posição social. Mas e se eu mudar essa unidade de medida para o tanto de impacto que eu causo na vida do outro? Então, poderei dizer que sou uma dessas pessoas realizadas? 

É que na oportunidade de ajudar quem busca um recomeço, pude testemunhar e sentir algo incrível. Ao compartilhar meu conhecimento e oferecer apoio, colaborei para que essas pessoas se sintam parte de um lugar, mais conectadas, capazes e confiantes. No final das contas, ao ajudá-las, fui ajudada. Porque não se trata apenas do resultado final, mas de quem venho me tornando durante o processo. 

 “Que saibamos mais uma vez que não somos seres isolados, mas conectados em mistério e encantamento a este universo, a esta comunidade e uns aos outros.” (Karen Tse)

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*O Programa Lampedusa é uma causa humanitária que aceita apoiadores. São bem-vindas empresas que possam colaborar doando os lanches ou outros artigos de necessidade, além de professores e de pessoas que tenham conhecimento de outros idiomas falados pelos imigrantes a fim de estreitar as relações com eles e facilitar o aprendizado. 

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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