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Como aprender a esquiar foi libertador
Como aprender a esquiar pode ser libertador. Foto: Zoé Rey
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A mala cheia não fechava. Então me joguei de bruço sobre ela com todo o peso do meu corpo e puxei o zíper com pressa antes que as blusas estufassem para fora de novo. Não é do meu feitio viajar carregando tantas coisas, mas dessa vez eu queria estar lá em “grande estilo”, com roupas e acessórios diferentes para cada ocasião. Parecer bem era importante para mim. Meus dedos ágeis giraram os discos que embaralham o segredo do cadeado e assim ficou garantido que a bagagem permanecesse bem vedada até o destino final: um povoado de montanha, na Suíça. Foi quando minha mãe entrou no quarto e disse estar contente por me ver retornando a um lugar onde fui feliz.

— Na verdade, não foi bem assim não, mãe. 

Saí de cima de cima da mala e, naquele dia, contei a ela sobre um lado desconhecido da minha história de viajante. 

Contei a ela sobre como encontrei aquele vilarejo para onde eu voltava agora, e por que havia morado lá antes.

E falei também sobre como, ao querer demais e me esforçar demais para ser acolhida e pertencer àquele lugar, acabei fazendo mal a mim mesma. 

E sobre como, ao aprender a esquiar, fui salva desse sentimento ruim que é o de não se considerar querido, capaz ou bom o suficiente.

Uma cidade de montanha

Foi há muito tempo. Durante um inverno europeu eu quis, de curiosidade, seguir até o fim da linha de um trem que subia a mais incrível cadeia de montanha que eu até então havia visto. E chegando na última estação, não demorei mais que alguns minutos para escolher que lá, a 1500 metros de altura, eu moraria por tempo indeterminado até que decidisse retomar meu ritmo nômade. 

uma região montanhosa com neve, árvores sem folhas e um céu azul com nuvens cinzentas

O lugar. Foto: Arquivo pessoal

Lá, a vida acontecia em 4 ou 5 vilarejos formados por casinhas de madeira e girava em torno dos esportes de neve durante o tempo frio. O restante do ano era movimentado pelo turismo, produção de leite e queijo e cultivo de uvas para vinho. 

Acontece que um período após me estabelecer, comecei a me sentir deslocada.

É verdade que meu sonho de morar num chalé na montanha, rodeada de amigos que se reuniam em volta do fogo à noite tocando violão, havia dado certo e ia muito bem. A gente se divertia, cantava, cozinhava junto… Nossas histórias se pareciam: éramos viajantes que, atraídos e encantados pela força invisível das montanhas, haviam decidido viver por ali sem prazo para ir embora. 

E toda noite eu me alegrava pela oportunidade de estar vivendo o meu sonho.

Mas toda manhã eu acordava desse sonho. Sozinha. O chalé estava vazio. Todos haviam saído. Só voltariam no fim do dia. Agora, estavam fazendo algo que eu não podia fazer. 

Então, eu me levantava, preparava meu café da manhã no silêncio da cozinha, e saía de casa caminhando pela neve. 

Se não era dia de trabalho, eu explorava a região a pé, percorrendo trilhas. Mas não ia muito longe, não! Eu tinha medo de me confundir naquele branco todo e me perder. 

Em dia de trabalho, eu pegava um trenzinho especial que ia até o topo da montanha mais alta da cordilheira. Desembarcava e caminhava uns 300 metros pela neve fofa até um chalé-restaurante fincado na imensidão branca — lá dentro, eu passava o dia lavando pratos. 

E que interminável e constrangedora travessia eram esses poucos metros entre o ponto do trem e o restaurante! Eles cruzavam o miolo da estação de esqui, onde todas as pistas convergiam. Cada passo dado era a chance de um esbarrão, de um tombo embolado com um desconhecido que vinha deslizando, de um pisão desajeitado que ia fundo no gelo (onde, não raro, eu atolava)… 

 — Ô, madame, o que tá fazendo aí sem esquis?! 

Pois é, eu passava vergonha.

Foto de um trêm nas cores cinza e vermelho com a neve ao redor. Ao fundo, montanhas e um céu azul

O trem que me levava para lá e pra cá. Foto: Arquivo pessoal

À margem e sem amigos

Entre um zum e outro das lâminas de esquiar, ora eu encolhia um braço, ora tapava os ouvidos — como se isso me protegesse… — e seguia obstruindo a rota dos esquiadores e dos surfistas de neve, os atraentes snowboarders (que não eram para o meu bico). Meus amigos com quem eu dividia casa estavam na multidão. Todo mundo estava ali esquiando, menos eu. Eu não conseguia. Eu tinha medo. 

Mas eu queria fazer parte daquilo, como queria!

O pessoal aproveitava também o après-ski — expressão francesa que significa “depois do esqui” para se referir à socialização após um dia de esporte. É uma happy hour que acontece nos bares, cafés, restaurantes celebrando o dia, a vida, o poder fazer aquilo tudo… Eu não participava. O que eu ia fazer lá se não tinha feito “o antes”? 

Assim, com o tempo, fui ficando à margem, sem amigos — coisa que ia na direção contrária do que viajantes celebram: o encontro com o outro, a experimentação de culturas, a abertura para o que vier. 

Mesmo se o que vier seja ridículo… 

Passei a desdenhar da vida ali e dizia que o frio era chato. Mas era faz de conta: o frio nunca me incomodou.

Ser salva pelos outros

Fiz então amizade com a turma que não esquiava e tinha como única intenção trabalhar, ganhar dinheiro e partir no fim de temporada. Assim, amiga de um grupo que me aceitasse, deixei de ser sincera até comigo mesma. 

Não sei dizer por que a aprovação vinda dos outros é uma forma de satisfação pessoal. Nem sei dizer quando, em mim, essa necessidade surgiu.

Segui nesse desconforto limitando a vida até o dia em que resolvi pagar alguém para me ensinar a esquiar. Uma atitude aparentemente simples para a maioria das pessoas era, para mim, um grande passo e a quebra de um velho padrão de comportamento. 

Quando coloquei as botas e pesei meu corpo sobre os calcanhares — é assim que a gente trava as botas de esqui — comecei uma jornada de autoaceitação. E ela foi longa. 

Primeiro tive um professor sem empatia. Ele fez parecer tudo difícil, mas pior que isso, parecia não se importar se eu caía e ou se deslizava. Eu era mais uma aluna desinteressante e desengonçada pagando a ele por uma hora de conhecimento.

E eu caía tanto, que já não sabia se doía a bunda ou minha dignidade. Desisti. 

Vigiai os pensamentos

Como podia isso? Tanto sonhei em subir montanhas e ver o mundo de cima e depois descer lá de cima em velocidade e com ar batendo no rosto, escutando Take on Me do A-ha… E agora todo mundo em volta podia fazer isso e eu não? 

Foi quase o fim de um sonho. É preciso estar vigilante com nossos pensamentos e sentimentos porque senão qualquer coisinha na vida que acontece, a gente já esmaga o próprio sonho.

“Como é que seria se nada no meu caminho tivesse me metido medo?” , perguntei um dia a mim mesma enquanto atravessava a pé pela centésima vez aquele caminho de pó gelado e fofo da estação ao restaurante. “E se eu não ligasse para nada, nada, nada mesmo – quem eu seria?” 

Vem chegando uma amiga

Não sei dizer quem gostou mais da outra primeiro, mas um dia apareceu lá uma amiga que eu havia feito em outro país. Jurga (se lê “iurga”) era uma lituana que, encantada com o que eu contava sobre as montanhas, decidira vir em meu “socorro” por algumas semanas. Essa doce ex-cidadã soviética conhecia o gelo como ninguém. Na missão de me fazer entender como me posicionar na neve, começou com o quadril. 

Sim, esquiar é uma dança do quadril. 

No âmbito da metafísica da saúde — campo de estudo que relaciona estados emocionais com a saúde física — o quadril representa a nossa flexibilidade para lidar com adversidades do cotidiano. Usando nossa força interior para nos desviar e nos posicionar diante das situações favoráveis ou desafiadoras que surgem, vamos trançando o quadril no ar. Trata-se do famoso jogo de cintura — um “manejo existencial”. Essa forma de “manejar” minha existência ali na neve me pediu inteligência emocional tantas e tantas vezes que comecei a chorar no meio do aprendizado. Para favorecer a minha desenvoltura, como diz a metafísica da saúde do quadril, precisei dirigir mais atenção a mim e à execução da minha tarefa do que às opiniões alheias. E descobri que aquilo que mais enfraquecia a qualidade do movimento do meu quadril era a preocupação excessiva com os outros e o medo do que iam dizer a respeito do meu desempenho.

Quando eu soube mexer meus quadris sobre o esqui, eu avancei alegremente, sustentada e amparada pelo meu poder pessoal. Eu me impus.

uma mulher esquia na neve com roupa amarela e alguns pinheiros ao redor.

Esquiar é uma dança dos quadris. Foto: Glade Optics/ Unsplash

Minha “tutora” também me induziu a trabalhar os joelhos. A maleabilidade dos joelhos remete a admitir os insucessos de antes para rever as decisões e as direções tomadas. Conforme eu retomo os passos anteriores e compreendo o que ocorreu, me faço capaz de tomar novos rumos para melhorar minhas experiências. E uma delas é reconhecer os próprios limites, fazendo as pazes comigo mesma pelas tantas vezes com o traseiro no chão gelado. A segunda referência metafísica relacionada ao joelho é a de se deparar com as mesmas situações ocorridas no passado, percebendo que a vida repete as situações de sempre até que o aprendizado ocorra. As articulações do joelho são fundamentais para a mobilidade do corpo. Quando elas são afetadas, interferem diretamente na marcha da pessoa, fazendo alusão à difícil movimentação pela vida — ou seja: a pessoa que não preserva sua determinação, rompe facilmente com seus objetivos ou se atrapalha com as situações à sua volta. 

Ao aprender a mover os joelhos no esqui, eu me perdoei e aprendi sobre tolerância, autocompaixão e avancei sem hesitação deixando os outros serem como são e sendo livre como eu sou. 

uma pessoa usando roupa vermelha esquia na neve.

Mover os joelhos é aprender a avançar na vida sem hesitação. Foto: Bradley-King/ Unsplash

Jurga também me apontou os pés, que remetem a estar em pé sobre a verdade e enxergar verdadeiramente minha posição e minhas possibilidades. Para ajudar os pés, usei os bastões, mas logo descobri que eles não serviam para muita coisa — ou melhor, serviam como coadjuvante, pois quem estava no controle era eu. O bastão é um cajado que ajuda a dar um impulso e, depois disso, segue ao lado do corpo do esquiador, em posição perpendicular, de modo que não atrapalhe. “O uso do bastão depende de você”, dizia ela. “Você é que sabe quão equilibrada está sua dança para não precisar pedir o apoio deles”. 

Mas olha, os bastões de esqui também têm umas funções importantes como tirar a neve acumulada das botas e ajudar a gente a se posicionar para subir nas cadeirinhas dos teleféricos! Vou dizer também que eles servem como um senhor apoio emocional.

uma pessoa vestindo trajes rosa e verde esquia na neve.

Os bastões viram apoio emocional. Foto: Slawek/ Unsplash

A hora do deslize, afinal

E na hora do deslize, finalmente, é preciso ordenar os pensamentos: as decisões precisam ser tomadas a tempo — e aí mora a linha tênue entre o tombo divertido e o trágico. O desvio correto, a entrada na pista certa, a escolha do declive ideal, quando é hora de ousar mais e passar de status saindo da pista iniciante para a avançada.

A descida em linha reta causa medo e nela se perde o controle facilmente. Eu me adaptei no zig-zag mesmo. Em linha reta as pessoas começam a vir, assim como as responsabilidades na vida caindo na sua cabeça. Vem o primeiro esbarrão, o descontrole, um tombo, dois tombos. E o choro sentada. E o recomeço de tudo de novo. Várias vezes. Mas cada vez com menos choro. 

crianças esquiando na neve com o tempo cinzento.

As crianças são bem melhores que a gente nisso. Foto: Zoé Rey

O grande deserto branco

Quando eu estava preparada, fui ao glaciar, uma grande planície branca a 3 mil metros de altura onde há bastante espaço para iniciantes — mas antes minha visão amedrontada da vida não me deixava ver que ali também poderia ser um lugar para aprender. Naquela imensidão clara, praticamente um deserto de gelo, me joguei na liberdade de ser quem eu queria ser — e fui me validando. Achei meu ritmo sem me importar se ele era o ideal, ou se eu era igual aos outros. 

Esquiando, eu passei a exercer meu direito de ser autêntica, de ser eu mesma; de exercer minha coragem de não seguir desejos que nem são meus; de exercer meu direito de admitir que estou em campo desconhecido aprendendo.

Eu me preocupava demais com o que o outro ia achar de mim quando me visse caindo dezenas de vezes. Eu me preocupava demais com o que o outro achava de mim. Aprendendo a esquiar, eu aprendi que eu sou quem eu sou. Liguei o música do A-ha no meu fone de ouvido, dei um impulso no bastão e entrei no fluxo da multidão descendo a colina branca. E me amei. 

Eu me encontrei e me validei, justamente, longe de tudo o que era me era conhecido. 

Agora eu estou querendo é aprender a patinar.

duas mulheres posam para uma foto em uma área de esquí.

Mesmo depois de adulto, sempre há tempo para aprender. Foto: Arquivo pessoal

14 coisas sobre a gente que descobri aprendendo a esquiar

  1. Você vai se comparar: Não tem jeito, quando menos você percebe, você está se atrapalhando com aquelas botas, bastões e roupa bufante pensando como é que tem gente que desliza graciosamente com essa parafernália toda. Se entregue e vá ser feliz.
  2. Você vai cair, mas vai se levantar: Com certeza porque se ficar no meio da pista vai atrapalhar os outros. Não é muito diferente da vida fora da pista, né? No esqui você cai diversas vezes até aprender, e a única diferença com o cotidiano é que no esqui a bunda dói.
  3. Você vai se sentir ridículo e vai passar vergonha: No fim das contas, era disso que eu tinha medo. Até perceber que no esqui todo tombo é meio ridículo e quase ninguém liga porque cada um está preocupado em ficar em pé em cima das próprias pernas. Além disso, exercer o direito de ser ou estar ridículo é uma das situações mais libertadoras e engraçadas da vida.
  4. Todo mundo é melhor que você em alguma coisa: Pois é, e daí? Ninguém é bom em tudo e quem está nas pistas antes de você, provavelmente, é melhor mesmo. Aceitar isso te liberta da desconfortável e inútil sensação de se comparar aos outros o tempo todo e te libera para a aprender algo novo se divertindo.
  5. Você vai se apaixonar pelo autocontrole: Quando você frear e conseguir parar porque quis (não porque foi obrigado), vai começar a ganhar autoconfiança e vai se sentir o máximo.
  6. Você vai ter medo de morrer, mas vai passar: Tenho uma amiga que costumava se perguntar por que inventaram que subir numa montanha e descer deslizando com grandes chances de perder o controle virou uma diversão.
  7. Os mais novos podem ser os mais experientes, sim: Pode parecer uma inversão estranha, mas deixa pra lá; quando você vir um monte de criancinhas que nasceram nas montanhas esquiando, aproveite para observá-las e aprender com elas; elas fazem isso desde que aprenderam a andar e são ótimos exemplos.
  8. Que o caminho é mais importante do que chegada: Definitivamente, aqui está um esporte que prova que muitas vezes na vida a jornada é mais legal que o destino.
  9. Pensar demais pode atrapalhar: Às vezes você vai perceber que muito pensamento atrapalha na decisão; só curta a brisa.
  10. Olhar para trás não vai ajudar: Não, nem um pouco! Nesse caso aqui, nem para aprender.
  11. Você vai ter que tomar decisões rápido: Isso vai acontecer para você não cair ou entrar na pista errada.
  12. Às vezes você vai ter que lançar mão da intuição: Nem sempre você vai ter resposta sobre qual é o melhor caminho; de novo, curta a brisa, escolha e vá em paz!
  13. Você vai aprender a voltar para a situação quando perder o controle: Aqui falo tanto de levantar depois de cair quanto de ajustar o caminho quando estiver perdendo noções.
  14. Você vai aprender a apreciar a conquista. E a comemorá-la: Après-ski é expressão francesa que significa “depois do esqui” e se refere à celebração em bares, cafés e restaurantes após um dia de esporte. É a comemoração do dia, do poder de superar os obstáculos do esqui ou do que seja lá o que for. Não é uma bela forma de agradecer pela vida? 

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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