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Viagem de carona com uma advogada e seus cachorros
Juliana Reis / Arquivo Pessoal Foto: Arquivo pessoal / Juliana Reais Juliana Reis e Luana Solomon estão juntas no motorhome em de cor cinza em um campo aberto com árvores ao redor.
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Juliana Reis foi rumo ao fim do mundo de motorhome, em boa companhia, acompanhada de uma advogada e seus cachorros. Ela é uma paulistana se desconectando da identidade antiga a bordo de um motorhome que avança para Ushuaia.

Luana é uma mulher ao volante rumo ao fim do mundo. Foi de abelhuda que pedi carona. Ela viaja na Fênix, sua van motorhome. Vivia em São Paulo, mas agora avança para Ushuaia, lá perto da Antártida, no finalzinho da ponta do mapa da Argentina.

Como me fascinam esses carros-casa… Há anos sonho em ter um para me perder no mundo (coisa que já fiz várias vezes, verdade, mas nunca levando a casa).

Sei que há fases na vida em que se quer partir deixando que tudo para trás se exploda. Você pega a bagagem, vai e recomeça. Você se sujeita aos horários do transporte, a colchões alheios, aos cardápios dos outros e à gravidade forçando o desapego material… E aí se reconstrói do zero pelo caminho. Ou na volta. Mas há fases de se levar junto a tralha nossa de cada dia. É dessa aí que eu falo agora. Dessa de tomar um rumo levando minha música, minha cama, minha cozinha, meu escritório… meu refúgio, enfim. No caso da Luana, levando tudo isso mais seus cachorros, Chai e Gregor.

Ajustes no destino

Nosso encontro calhou de acontecer num lugar onde o vento bate forte: Bom Retiro, cidadezinha porta da Serra Catarinense. O vento sempre me traz a sensação de que algo grandioso vem chegando. Na contação de histórias, quando ele sopra, o cenário muda. Ventania é transição. E ela chegou com a Fênix, na praça principal.

Ao apoiar meus pés no estribo e me acomodar, descobrimos que a casa ambulante não vinha preparada para levar companhia. O cinto de segurança não tinha extensão para abraçar um passageiro.

Fim.

Mas Luana insistiu.

Esvaziei todo ar do peito e me encolhi enquanto o danado do vento passava fácil, de fininho, pela fresta da janela. No sufoco, fiquei tonta, e me veio a lembrança de uma história. Quatro Amigas e um Jeans Viajante — filme cujo título original é mais legal e significa “A Irmandade da Calça Viajante” — conta a saga de quatro amigas que vão viajar separadamente pela primeira vez na vida. Antes da partida, elas entram numa loja e encontram uma calça jeans que se ajusta ao corpo de todas, embora tenham tipos físicos completamente diferentes. Frente ao mistério, combinam que a calça vai viajar com cada uma por um tempo, levando consigo o registro das viagens.

A calça jeans é uma metáfora. Significa o apoio que as amigas dão uma à outra na superação dos obstáculos do percurso e nas escolhas que farão pelo caminho. É também um elemento místico avisando que há transformação pela frente.

Quando finalmente o cinto se fechou num clic sôfrego, me veio a cena da magricela, a violão, a alta e a baixinha subindo uma a uma o zíper da calça e se entreolhando. Como é que aconteceu?

Logo que a Fênix desembestou pela estrada, a faixa que me esganava se ajustou lentamente ao meu corpo, tal qual o jeans viajante. Aceitei a mágica e não disse nada. Eu mal conhecia a Luana, e pela frente já vinha drama: uma estrada em ziguezague repleta de penhascos.

Luana Solomon dirigindo o motorhome com um reservatório de água ao fundo. Ela está sorrindo e usa óculos de visão.

Foto: Arquivo pessoal / Juliana Reais

Tormenta

A estrada que desce a Serra do Rio do Rastro foi pavimentada à beira de precipícios, numa picada que antigos tropeiros usavam entre planalto e litoral. São 12 quilômetros em declive acentuado e mais de 200 curvas fechadas que se percorridos durante o dia, melhor. Eram cinco da tarde quando começamos a descê-la.

Nuvens-chumbo se dispersaram no céu. Passaram por elas as últimas braçadas do sol. Bateu a ventania.

Olhando lá de cima, a serpente de concreto fica ainda mais fascinante com os arbustos balançando grudados nos paredões de pedra.

Foto da Serra do Rio do Rastro com serras e neblina ao redor.

Foto: Juliana Reis / Arquivo pessoal

Mas algo começa a sair do equilíbrio. Fora e dentro do carro. A Fênix balança. Minha determinação também. A autoconfiança da Luana, aparentemente, não. Os cães dormem no chão feito o tapete felpudo que tenho na sala de casa — aquela lá, fixa e segura.

Luana estuda manobrar a van num cotovelo e voltar. Eu verifico atrás de qual mureta vamos nos esconder quando o vento forte dominar a serra e levar a van voando. Será que os cães vão entender?

Um caminhoneiro na direção contrária avisa que o perigo se aproxima. Motociclistas tomam chibatadas do vendaval. Tomba uma Harley-Davidson.

Sem espaço de manobra, avançar não é mais uma escolha, mas a única saída.

Às vezes, seguir em frente é a única saída.

Avançamos em silêncio, apequenadas, entregues à força da natureza num trajeto apertado por paredões e precipícios. Luana no freio motor, ajustando a direção da vida que escolheu. Eu, agarrada em meus velhos companheiros, o Medo e a Coragem. Ambas apoiadas na presença angelical e calmante de Chai e Gregor.

A ventania foi o início de um ciclone passando por Santa Catarina. Atrás dele, os próximos dias teriam tempestade.

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Uma gôndola no caminho

No pé da serra veio a calmaria. Nos descampados, pequenos redemoinhos se desenrolavam. Essas espirais de ar são símbolo popular das travessuras do destino — avisos de que pouco podemos controlar na vida. Também há quem diga que são mensageiros elementais soprando boas vibrações e sugerindo um futuro cheio de novidades. De fato, vários quilômetros após o perrengue encontramos uma: dobrando à direita numa rua iluminada pela chama quente de arandelas, entramos numa cidade movimentada por cafés e cantinas italianas, onde uma gôndola (?!) boiava na praça principal.

Uma gôndola está estacionada em uma região com cobertura na cidade de Nova Veneza.

Foto: Juliana Reis / Arquivo pessoal

A mini-Itália escondida no interior de Santa Catarina é Nova Veneza. Ali, 90% dos moradores descendem de famílias da velha Veneza (a da Itália) e a gôndola é de verdade — veio de lá.

Fomos acolhidas em uma pequena casa no meio da mata. A Casita de La Bruja, fica no sítio de Marco e Isabel, amigos que Luana fez em paragens passadas.

E como os próximos dias seriam de vendaval, demos folga à Fênix, aceitando a hospitalidade do casal, de sua pequena Isadora e dos bichos do sítio.

Sem chance de sair mundo afora, começamos uma viagem mundo adentro.

Foto de uma árvore caída depois de um vendaval, há sol e regiões verdes ao redor.

Foto: Juliana reis / Arquivo pessoal

Isso aqui não é sobre Ushuaia

O convívio entre sessões matinais de yoga, preparo das refeições, troca de receitas, leituras e hora de lavar a louça (na pia ou no riacho ao lado da casinha encantada), foi trazendo à tona sonhos, rancores, inquietações, segredos… À noite, corríamos esquentar o pé e o coração pertinho do fogão à lenha da casa principal, jantando e batendo papo com Marco, Isabel e Isadora.

Assim, fora do banco do motorista, é que fui conhecendo a Luana.

Num tempo em que bastante gente sonha em “largar tudo” e fugir viajando por aí, notei que ela não está em fuga, não. Alguém que foge ainda está condicionado a viver sob as convenções impostas por aquilo de que foge. A Luana derrubou, sim, todos os pilares da existência que levava antes, mas saiu viajar sem eles no encalço.

Tornou-se vegana, aceitando viver na instabilidade do cotidiano estradeiro o desafio de não consumir nada de origem animal.

Interrompeu o casamento.

Pediu demissão de um emprego estável que pagava bem.

Isso, só para mencionar três de uma longa lista de bastas que ela deu.

A ideia original era explodir o passado partindo de mochila para um ano sabático, mas com a pandemia do coronavírus, ela refez o plano: já que não podia sair de casa, ia levar a casa junto. Nisso, os cães se encaixaram.

Como usou as economias para comprar a Fênix, aprende agora a viver com muito menos do que gastava na descolada vida paulistana.

Luana está se desconectando de uma identidade antiga, superando a si mesma, forjando novos princípios. Embora ainda não tenha ideia de onde isso vai dar. E não estou falando de Ushuaia.

Luana Solomon olha para a câmera com os olhos fechados e sorri, ao fundo, há uma escada com um colar de rosas, o motorhome e a paisagem verde.

Foto: Juliana Reis / Arquivo pessoal

Vida na cabana, sonhos no caminho

Os dias se passam, não saímos do lugar. Falamos de quase tudo e gargalhamos de muita coisa. Gargalhada cura. Estamos nos tornamos amigas.

Percebo que Luana também usa oportunidade para se ouvir e mensurar o que tem feito até aqui… e se quer continuar.

Chai e Gregor continuam lá, irradiando apoio e o amor puro dos bichos. Muito da força dela reside neles.

Durante nossa vidinha ali na casa, Luana respeitou meu necessário café preto diário e eu, que sou vegetariana, dei um passo além me tornando vegana temporária para acompanhá-la.

Quando me dei conta, há dias não sentia a dor habitual nas costas. Tomada por uma estranha agilidade e disposição, fui arrebatada pela enorme vontade de reaver os sonhos que larguei no caminho.

Foto do motorhome com o nome Luana Solomon ao lado e uma pequena casa ao fundo da foto.

Foto: Juliana Reis / Arquivo pessoal

Estacionar é preciso

A Fênix também precisou de cuidados. Aproveitamos as curtas tréguas da chuva para limpá-la e fazer incursões na cidade a fim de ajustar seu ar condicionado, encher seu tanque… E turistar um pouco. O drone que faz as fotos aéreas ganhou visita ao “médico” — tinha a asa quebrada.

Gosto tanto do movimento das viagens que rodaria o mundo sem fazer paradas — só olhando pela janela. Então, veio a Luana me ensinando que paradas são momentos de autocuidado e respeito pelo que não se pode ignorar. Ela está em movimento, mas precisa cuidar de si, da Fênix e dos cães. O que inclui bater ponto no atual trabalho: o de produzir vídeos e textos que a tornem conhecida.

Parar também faz parte do fluxo de viver.

Acho que essa sutil compreensão das coisas, confere à Lu nômade a serenidade e o autocontrole do qual lançamos mão quando atolamos a Fênix, levamos embora a fiação de luz enganchada no teto da van, e derrubamos várias vezes a energia elétrica do sítio. Tudo quase sempre resolvido com a ajuda dos anfitriões Marco e Isabel — ele enfermeiro, ela agente de saúde — que, passei a desconfiar, são também curadores de almas e das dores invisíveis.

Finalmente, o mundo lá fora

Ao partir de Nova Veneza rumo à fronteira com o Rio Grande do Sul, conduzimos a Fênix perplexas com a paisagem — bonita, mas devastada pela tormenta que arrasou o mundo aqui fora enquanto a casinha nos protegia. Muita água, ora invadindo, ora ladeando a estrada. Campos de arroz irrigado, rio, lagoa ou enchente?

Imagem do sol em um reservatório de água com nuvens espassadas no céu.

Foto: Juliana Reis / Arquivo pessoal

Durante a travessia pensei no quanto compartilhamos de vida até agora e o quanto aprendi com a Luana sem nem ter “morado” dentro do motorhome ainda.

Ensaio mais perguntas, tenho uma entrevista para fazer aqui, afinal! Mas a gente nunca consegue terminar o jogo de questão e resposta. Agora, quero conversar sobre desconhecidos que estendem a mão aos viajantes, mas ela está ocupada. Acabou o gás da cozinha e precisamos achar um fornecedor. Noto como Luana não enxerga complicações nas coisas. Ela se recusa a colocar energia extra naquilo que sabe que não pode resolver.

— Tem especialista para tudo. Eu recorro a eles.

Aqui é onde eu me sinto um pouco idiota. Tantas coisas que deixei de lado na vida por ter vergonha de pedir ajuda…

— Se eu não acreditar no bem e nas pessoas, nunca vou sair por aí até o fim do mundo com dois cachorros.

Pluma ou fardo

Viagem quase no fim, estacionamos em Torres (RS) e só agora é que vou viver no motorhome. Dormir, comer, cozinhar… tudo lá dentro. Limpar banheiro, cortar cebola, levar lixo para fora. Uma cabeçada aqui, um tropeço ali, uma licença espremida para a outra passar… Igual viajar de avião, ônibus, na cabine de um barco ou de trem.

A Fênix me deu a mesma lição que a mochila: no dia a dia, não preciso de muito pra viver, e o que pesa na bagagem é aquilo que talvez eu venha a precisar. Acertar esse equilíbrio é o que faz a bagagem do viajante ser uma pluma ou um fardo.

Começo a preparar minha despedida. Recebi um novo chamado. É um daqueles sonhos que eu falava em reaver: vou dar aulas de português para imigrantes. Eles me aguardam. Minha jornada na Fênix precisa terminar aqui.

Imagem de uma tábua de madeira com tomate, alho e ao fundo a grama com um cachorro.

Foto: Juliana Reis / Arquivo pessoal

Quase famosos e um burnout

Qual foi o ponto exato no enredo da existência da Luana que a fez querer partir para o mundo? Nunca conseguimos terminar essa conversa porque a vida nos interrompia a toda hora… Encher o tanque, olhar no mapa, lavar a louça, varrer o chão, conversar com novas pessoas, mimar os cães, prestar atenção nas placas da BR… Eu me senti como aquele personagem do filme Quase Famosos, que entra numa turnê com uma banda de rock na missão de entrevistá-los para a icônica revista Rolling Stone e nunca consegue. No final, ele descobre que a história estava na louca convivência com os caras.

Tenho encontrado muita gente que, antes de pegar a estrada, relata haver passado pela tal exaustão mental e emocional da nossa era, o burnout. Luana não sofreu disso. Mas soube que sofreria se continuasse deixando seus meios profissionais e afetivos pressionarem seus limites e princípios. Soube levar em conta que se não mudasse a direção, seria logo desconectada de si mesma. Aceitou ir até o fim do mundo para se encontrar.

Ir, não fugir!

É isso! Com as mãos no volante da Fênix, ela retoma a direção da vida. O verdadeiro fim talvez nem seja o Ushuaia.

E eu, que embarquei nessa por querer fazer igual, descobri que não sei se quero exatamente um motorhome. Pelo menos não agora. Talvez um carro menor e uma barraca sejam mais eu. Começo a gostar de ser quem eu sou e a confiar no meu jeito único de fazer as coisas. Começo a me libertar do desejo de ser como o outro, de ter o que o outro tem. Cada um tem seu jeito único de dirigir pela vida.


JULIANA REIS é uma contadora de histórias de viagem que sonha em ter um motorhome desde criança para bater asas sem arrancar as raízes. No Instagram, descreve suas impressões no perfil @viagenstransformadoras. Escreve aqui, no portal Vida Simples, mensalmente.

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