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Os desafios de viajar sozinha quando você é mulher
Unsplash | Kristina Wagner
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“Uma viajante é uma verdadeira força da natureza, é a mulher em seu ápice e em pleno exercício de seu poder pessoal”, conta Juliana Reis. Em sua coluna, ela relata sua experiência como viajante solo e faz um convite para um evento que reunirá outras mulheres que desbravam (ou querem desbravar) novos destinos. 

Sempre tive a mente caótica e uma certa dificuldade para me manter focada em apenas um pensamento ou um desejo. Até entender que essa condição poderia ser trabalhada como uma habilidade, fui levada a acreditar que ela se tratava de um defeito que conduzia meus planos ao fracasso.

Há muitos anos, enquanto arrumava a mala para minha primeira grande viagem, ouvi uma conversa vinda do corredor lá de casa. Meu pai estava inquieto pela filha estabanada, que já se atrapalhava antes mesmo de embarcar, com as resoluções que uma longa viagem demanda.

— Ela saberá o que fazer – defendeu minha mãe.

A preocupação de meu pai era legítima. Eu não só estava sozinha como, para piorar, qualquer desafio que surgisse na minha vida nos próximos meses teria de ser solucionado pela pessoa que menos inspirava força por ali: eu mesma. É, apesar do atrevimento, eu passava pouca credibilidade.

E havia mais dois agravantes. Eu era mulher. E eu era baixinha. O protótipo de uma garota pequenina e desprotegida solta no mundo — pelo menos aos olhos de uma sociedade dominada por homens.

Eu, viajando sozinha, sem medos e num momento livre dos códigos locais. (Foto: Arquivo pessoal/Juliana Reis)

Sozinha e sem GPS

Naquele tempo, as coisas não se resolviam apenas com um clique no Google e no GPS, ou com uma mensagem de celular. Portanto, este ser indefeso teria de aprender a tomar conta de si, caso quisesse conhecer o mundo sem as amarras de um roteiro pré-definido e de um amanhã planejado.

De fato, durante bastante tempo foi desastroso e solitário tentar me equilibrar segurando na mão direita uma mala pesada, na esquerda um mapa da nova cidade, no ombro o gancho de um telefone público para encontrar uma hospedagem disponível, e na cabeça um pouco de autoconfiança.

Isso quando não era importunada por algum desconhecido acreditando que a garota solitária precisava de uma mão.

A difícil arte se fazer entender

A cada país, uma moeda. A cada cidade, um costume, um novo cardápio, um jeito diferente de se locomover ou de se fazer entender… Viver constantemente sob mudanças era desafiador. Também era prudente evitar a chegada a determinados destinos muito tarde da noite — afinal, eu era mulher e estava sozinha, o que podia passar uma ideia equivocada de disponibilidade e poderia ser perigoso.

Para fazer dar certo, eram muitos os cálculos e as decisões a tomar sem a ajuda de mais uma cabeça pensante.

Com o passar dos anos, e dos quilômetros percorridos, fui compreendendo que estar a par dos códigos culturais de cada lugar permite que uma mulher viaje mais tranquilamente.

Desenvolvi um sistema de autodefesa baseado na minha linguagem corporal de forma que, aonde quer que eu chegasse ou por onde passasse, as pessoas me notassem como alguém autoconfiante e no controle da própria vida — o que diminuía as chances de importunação.

Parece opressivo, e sei que gostaríamos que fosse diferente.

Mas percebi que compreender as diferenças de comportamento de cada país e saber lidar com elas, bem como desembaraçar as mensagens mal interpretadas e encontrar soluções para questões novas ou inusitadas, é uma arte para a qual as mulheres estão especialmente preparadas.

Desenvoltura e criatividade são características inerentes à natureza feminina. E esses traços são fundamentais para alguém que viaja.

Foi disso que minha mãe falava quando defendeu, na conversa lá do corredor, a capacidade da garota aqui de explorar outras fronteiras. Para ela, eu saberia o que fazer quando a estrada trouxesse dificuldades. Eu saberia justamente por ser mulher.

Oh, my god! O que faremos agora?

Há alguns anos, a atriz norte-americana, Reese Witherspoon decidiu criar uma produtora com foco em personagens femininas quando notou que mulheres não tinham espaço para contar suas próprias histórias nos filmes de Hollywood. Reese, que já ganhou um Oscar e é conhecida por estrelar o filme Legalmente Loira, cujo roteiro defende que as mulheres são capazes de ter sucesso em tudo o que querem, é autora de um conhecido e divertido discurso sobre a habilidade feminina de se sair bem em qualquer situação:

“Eu fico apavorada ao ler roteiros que não têm uma mulher envolvida na criação porque, inevitavelmente, eu chego àquela parte onde a garota pergunta para o cara ‘o que faremos agora?’ Vocês conhecem alguma mulher numa situação de crise que não tem qualquer ideia do que fazer? Eles não dizem às pessoas em crise, até mesmo crianças, para procurar uma mulher em caso de problema? É ridículo pensar que uma mulher não saberia o que fazer”,  diz Reese.

Ora, se Reese estiver certa, e se viajar é lançar-se no desconhecido, mudar de cenário a cada dia e encarar crises provocadas por sentimentos diversos como medo, apego e controle, a combinação mulher–viajante é uma verdadeira força da natureza.

Quando uma mulher viaja, ela está em seu ápice, em pleno exercício de seu poder pessoal.

Eu com meu anfitrião Mr. Aziz, no sul da Turquia: lenço na cabeça para me adaptar aos códigos locais. (Foto: arquivo pessoal/Juliana Reis)

Instinto e intuição

Existe uma crença geral de que o raciocínio espacial é um traço muito mais comum em homens. Desculpem, meninos… Com sua capacidade natural de associar informações e enxergar amplamente, a maioria das mulheres faz mágica com um mapa nas mãos. E sem GPS.

Há alguns anos, conduzi minha família por uma jornada aos lugares onde eu havia estado em viagens anteriores. Foram 32 dias percorrendo os confins dos países bálticos, atravessando a Rússia, subindo os Alpes, navegando pelo mar gelado da Escandinávia…

No trajeto, os homens do nosso pequeno grupo encontraram dificuldades para se desapegarem de hábitos domésticos como cardápios conhecidos, sono na própria cama, horários cronometrados e alguns medos. Minha mãe, a única mulher além de mim, foi feliz o percurso inteiro, tomou a dianteira sem dificuldades, superando os desafios da viagem com bom-humor e aceitou serenamente as situações desconhecidas. Voltou transformada.

Viajante experiente, ela já havia explorado com um grupo de amigas várias rotas de caminhada e peregrinação espalhadas pelo Brasil e pela Europa. Parte da história delas, essencial para encorajar mulheres a viajar, está contada no livro “Real É a Nossa Estrada.

Uma teia de mulheres pelo mundo

Quando olho para trás e me recordo das ajudas mais decisivas que recebi em viagens, noto a formação de uma teia de mulheres fortes, acolhedoras e de intuição aguçada, sejam viajantes ou moradoras dos lugares por onde estive.

  • Teve a Valentina, que me estendeu a mão num trem quando precisei chegar na Ucrânia em segurança anos atrás.
  • A russa Ludmila, que me ofereceu abrigo e tradução na Crimeia.
  • A francesa Matilde, que me fez companhia quando hesitei em ir sozinha de Damasco (Síria) até a fronteira com as colinas de Golan, território anexado ao vizinho Israel e que há anos é fonte de tensão entre os dois países.
  • A lituana Jurga, que sutilmente me ajudou a superar o medo de altura me ensinando a esquiar.
  • A franco-canadense Geneviève, que cuidou de mim feito mãe e me levou ao médico quando tive uma séria crise alérgica longe de casa.
  • A galega Rosie, que me ensinou tudo sobre como servir vinhos quando precisei de um trabalho para me manter viajando.
  • A norueguesa Maria, que me encorajou quando decidi trabalhar num campo de refugiados no Líbano vivendo uma realidade totalmente diferente daquela que eu conhecia.
  • Teve também a condutora de um ônibus no interior da França, uma total desconhecida que, por intuição, que me apresentou o lugar mais mágico onde já estive em toda a minha vida de viajante: uma pequena vila onde fui acolhida por outras mulheres e pude me recuperar de um problema até estar preparada para prosseguir viagem.

Não foram as únicas. Houve mais delas. E quando não houve, aprendi a lançar mão do meu próprio poder pessoal, que se revelou surpreendente a cada fronteira cruzada.

Nós somos muitas, não somos frágeis

Agora, minha teia está prestes a aumentar. Mulheres que há tempos me inspiram de longe, e que fazem da viagem uma ferramenta de empoderamento, vão se reunir na cidade de São Paulo, nos dias 19 e 20 de março no 3º Encontro Brasileiro de Mulheres Viajantes.

Vinte delas vão subir ao palco para contar suas histórias e abordar novos olhares no jeito de viajar. São adeptas do motorhome, das viagens de bicicleta, moto e barco, do nomadismo, do período sabático, das viagens para voluntariado, das viagens com os filhos, de explorar o mundo sozinhas após a aposentadoria…

Além disso, vamos ouvir sobre como aconteceu o apagamento da história da cultura negra em destinos turísticos com Isabella Santos do projeto Sampa Negra. As dificuldades e adaptabilidade para pessoas com deficiência serão abordadas por Jéssica Paula, que viajou 34 países sozinha e acumula aventuras pelo Brasil apoiada em muletas.

Jéssica Paula: palestrante que viajou 34 países sozinha e acumula muitas aventuras pelo Brasil apoiada em muletas. (Foto: divulgação)

A mulher por trás dessa reunião é Gilsimara Caresia, que após 17 anos dedicados ao mercado financeiro, deu a volta ao mundo e criou o projeto GirlsGo – Viagens para Mulheres, criando uma comunidade nas redes sociais com cerca de 200 mil mulheres viajantes.

Será possível me acompanhar no encontro por meio do @viagenstransformadoras nos dias 19 e 20 de março. Se você ficou interessada em saber mais sobre como participar e sobre as palestrantes, é só acessar o site do evento.


JULIANA REIS é contadora de histórias e acredita nas viagens como ferramenta para ativar o poder pessoal feminino. No Instagram, descreve suas impressões no perfil @viagenstransformadoras. Escreve aqui, no portal Vida Simples, mensalmente.

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