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O jogo da vida
(Foto: César Ardila/Unsplash)
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Dia desses, ele vestia uma camiseta amarela. Parecia um canarinho. Estávamos de lados opostos da mesa. Olhei para ele, que me sorriu. Não sei se papai sabe quais vendavais ando enfrentando.

Lembro-me de quando era mais jovem e contava algo para ele, que sempre tentava resolver meu problema. Quando era estudante de jornalismo e estava aflita com meu futuro profissional, ele arranjou uma conversa para mim numa agência de marketing.

Eu não sabia o que estava fazendo ali – nem a pessoa com quem fui encontrar. Foi algo meio sem pé nem cabeça. Saí de lá com uma ponta de raiva por ele querer resolver tudo por mim e me colocar, às vezes, em situações constrangedoras.

Hoje entendo que ele estava tão perdido quanto eu. Vendo-me naquele mar de dúvidas, prestes a me afogar, só jogava uma corda para que eu não afundasse.

O tempo foi passando e eu fui me fechando. Não queria que ele resolvesse a minha vida. Tive tantas fases difíceis e as escondi uma a uma. Talvez naquele tempo ele soubesse por que meus olhos eram tristes. Mas eu não permitia mais que ele jogasse a corda. Queria resolver sozinha, e sendo assim, pedir ajuda era perder uma partida no jogo da vida.

O jogo da vida que perpassa gerações

Esta semana, Lucas, meu filho, estava cabisbaixo. Devo ter perguntado umas três vezes o que era. Até aquele argumento mais baixo eu usei: “sou sua mãe e sei que algo está acontecendo”. A resposta dele era sempre a mesma: “não é nada, mãe”.

A gente acha que pode enganar os pais. Sei, agora, que isso é uma ilusão. Percebo no meu filho que há algo minando-o. Que sejam os hormônios da adolescência. Os olhos ficam mais opacos, o jeito de andar, curvado. As graças não lhe interessam e ele está permanentemente emburrado.

Crescer é um troço difícil. Como filha, não quero que meu pai interfira, mas que abra espaço para que eu seja. Como mãe, fico com a boia a postos para emergências, torcendo para que meu filho sobreviva à onda que o arrebatou.

A verdade é que, quando vi meu pai vestido feito canarinho, tive vontade de chorar e de lhe contar tudo que anda me atormentando. Mas o poupo. Ele está com 88 anos e não quero preocupá-lo.

A vida prega peças na gente. E nos coloca no ponto em que nossos pais gostariam que estivéssemos no momento que, para nós, parece errado.

Velhice é, ou deveria ser, portanto, tempo de paz. Retribuo seu sorriso, engano a mim mesma e tento enganá-lo, contudo. Talvez seja isso… estamos nos enganando, o tempo todo, pela vida.

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Conteúdo publicado originalmente na edição 274 da Vida Simples.

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