Mostrar fragilidade em meio ao colapso é um ato para a renovação
Quantas vezes nos achamos invencíveis até que, de repente, o corpo nos limita? Em meio a crises, a fragilidade pode ser o portal para uma renovação inesperada; leia mais na coluna de Patricia Cotton
- Colapsos são remédios para a renovação
- Sustentar é diferente de suportar
- Colapsos nos tornam honestos
- Passando a vida a limpo e a seco, sem anestesias
- Autoconhecimento é, na verdade, uma experiência terrível
- A renovação que vem depois do colapso
- Fragilidade é essencial para a renovação
- Que renovação você faria se não resistisse ao colapso?
O corpo costuma ser um professor subestimado, e até ignorado. Muitas vezes tratado como um objeto – quase um carro alugado, seja por excesso de indulgência ou pela obsessão em torná-lo uma vitrine – acaba se fazendo ouvir no grito, no colapso. Sem pedir licença, se impõe, esperando, na medida do possível, uma renovação.
Eu vivi isso recentemente ao entrar no hospital para fazer exames, e permanecer lá por quase uma semana.
Na ocasião, uma tosse incessante e fraqueza incontestável me acompanhavam. Sentia-me na clássica cena de suspense do chuveiro de Psicose, onde os fatos são turvos e o desconforto é notório.
Meu pulmão ardia em chamas, assim como o Brasil. Consumindo o próprio ar, o colapso se insinuava em cada faísca. A dificuldade de respirar era coletiva – e a necessidade de reflexão também.
Colapsos são remédios para a renovação
Enquanto buscava entendimento (meta)físico do que se passava, observei o trabalho dos enfermeiros. Abraço e punhalada só ganha quem está perto – eles pareciam saber disso, assim como discernir o que de fato é urgente.
Admiravelmente resilientes, tinham a capacidade ímpar de manter o equilíbrio em meio às adversidades. Conseguiam, sobretudo, ser afetuosos com desconhecidos, indo muito além dos cuidados práticos (e remunerados). Trabalhar com amor muda tudo para quem o dá, e para quem recebe.
Sustentar é diferente de suportar
Desde que o conceito de resiliência virou moda no mundo dos negócios, nos tornamos condicionados a resistir a todo custo.
O efeito? Vivemos em um ciclo de esgotamento, onde empresas e pessoas naturalizam permanecer alavancadas, endividadas, ansiosas, asfixiadas e exaustas.
Como peladeiros de bets, apostamos em promessas de salvação de um futuro que há de chegar, “se Deus quiser”. (Deus, por sua vez, deve estar com burnout a esta altura).
Por que insistimos em negar limites? Sustentar o insuportável não torna nada nem ninguém mais resiliente.
Apenas mascara a fragilidade, como se uma rachadura fosse cimentada – em vez de consertar, disfarça o problema.
Colapsos nos tornam honestos
A renovação requer um tipo de honestidade quase masoquista. Para que haja realinhamento existencial, é preciso dar boas-vindas ao imprevisto e ao temido deserto. Ter força para revelar fraquezas.
Encarar os roteiros que talvez não tenhamos escolhido conscientemente. Retroceder, ao invés de avançar cegamente. Correr o risco de quebrar. Não patologizar a tristeza nem as marés baixas.
E, quem sabe, até desistir de caminhos que se revelaram insustentáveis. Colapsar pode ser nosso maior ato de renovação.
Leia mais
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Passando a vida a limpo e a seco, sem anestesias
O Alcoólicos Anônimos (AA) propõe uma reflexão semelhante em seu Programa de Doze Passos. O quarto passo é justamente um “inventário moral” profundo e destemido.
Nesse processo, reconhecer o próprio estado é o primeiro passo para qualquer renovação genuína.
Muitas vezes, tanto indivíduos quanto organizações se apegam a padrões de comportamento e idealizações que, no fundo, são barreiras para a verdadeira transformação.
Autoconhecimento é, na verdade, uma experiência terrível
Fazer um mergulho honesto em si pressupõe, em primeira instância, aniquilar as autoidealizações. É, em suma, lidar com a inconveniente visita da verdade. Desiludir-se.
No meu caso, a pneumonia trouxe um encontro com os meus limites e com a autodúvida. A coragem e a autoconfiança, tão familiares, saíram de cena sem aviso prévio, me deixando perplexa.
Conheci minha versão mais insegura e ansiosa. Em meio ao colapso, descobri que estava vivendo acima das minhas possibilidades, e abaixo do meu potencial.
E, estranhamente, essa tomada de consciência indigesta foi também um convite para promover a renovação da força interior, que andava desbotada.
A renovação que vem depois do colapso
Pessoas e empresas fortes e resilientes também quebram, obviamente. Mas há algo de difícil em assumir isso para si e para o outro, que, por sua vez também evita acolher a fragilidade de quem jamais precisou de ajuda.
Pedir apoio por vezes parece fraqueza, mas é, na verdade, sinal de humildade. Quebrar, inclusive, não seria tão assustador se soubéssemos que o que vem depois pode ser bem melhor.
Fragilidade é essencial para a renovação
A fragilidade é condição para o ato de renovação, como bem ilustra a classica música That’s Life, cantada por Frank Sinatra. Você está voando alto em abril, é abatido em maio, e está de volta ao topo em junho, diz a canção.
“Já fui marionete, indigente, pirata, poeta, peão e rei”, canta Sinatra, e enfim conclui: essa é a vida.
A ex primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, é um exemplo disso. Depois de ser considerada uma referência global na gestão da crise pandêmica, renunciou ao cargo, reconhecendo corajosamente os seus limites.
Em um discurso emocionado, Jacinda assumiu que não tinha mais “combustível suficiente no tanque” para liderar seu país, e que os seis anos desafiadores no cargo cobraram o seu preço.
Que renovação você faria se não resistisse ao colapso?
Na vida e nos negócios, enfrentamos um paradoxo: resistir cansa, mas renovar exige aceitar as quedas e rever o caminho sem garantias. Por vezes, saber quando parar, como Jacinda nos ensinou.
Talvez seja justamente nos momentos de fragilidade que encontramos a chance de nos reinventar, com a sinceridade e coragem que só a crise desperta.
Em última análise, o verdadeiro ato de liderança criativa, seja pessoal ou profissional, está na capacidade de quebrar para renovar e acolher o que emerge.
Essa é a dança — não a de perfeição, mas de autenticidade, onde somos capazes de criar um futuro com mais fôlego, não pelo que resistimos, mas pelo que transformamos.
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