Estamos impregnados de futuro, mas de qual?
Tudo que cabe em nossa imaginação pode ser verdade, segundo uma máxima da física. Ser humano é, portanto, projeto infinito. Assim como o futuro que queremos ver nascer.
Ouvi recentemente que vivemos em um tempo promissor. Fiquei intrigada com o otimismo corajoso dessa afirmação em tempos de apocalipse. Independentemente do script cósmico que (ainda) desconhecemos, estamos sendo convocados – desde já – à nos conectarmos com o que há de mais essencial, verdadeiro e profundo em nós, sem purpurinas, caso desejemos de fato um futuro promissor.
Eventos trágicos como a devastação por conta das enchentes no Rio Grande do Sul, em maio de 2024, privam vítimas de tudo o que é básico, e evocam o questionamento coletivo sobre nosso estado de emergência. Mas também podem revelar – a todos nós – uma poderosa fonte de amparo, sobrevivência e futuro: o sentido.
Tragédias estão sempre à nossa espreita. Evitamos pensar nisso, já que dificilmente conseguimos evitá-las. Diante do incontrolável, o que nos dignifica, afinal?
O sentido nos encaminha para o futuro
No seu arrebatador livro O Homem Em Busca De Um Sentido, Viktor Frankl narra com honestidade brutal e liberta de exibicionismos a sua dramática luta pela sobrevivência em quatro campos de concentração durante a 2ª Guerra Mundial.
Escrito em apenas 9 dias, seu relato inspirador mostra que, apesar da imposição das necessidades básicas em momentos de desgraça, como a demanda por comida e descanso, a busca por pertencimento e sentido também se revela primordial. Em síntese, Frankl defende a ideia de que quando o homem tem um porque, ele pode sobreviver a qualquer como.
O que fazer quando (aparentemente) não há nada a fazer?
Li as sábias e inesquecíveis palavras de Frankl enquanto estava “internada” em uma residência artística na zona rural da Espanha para terminar meu livro.
Isolada por quilômetros de oliveiras num cenário semi-desértico, o que era pra ser êxtase foi pura agonia. Lá conheci uma refugiada ucraniana que teve sua cidade natal totalmente destruída.
Qualquer conversa com ela, cujo idioma corrente é o mesmo do inimigo, era um campo minado. Sem ter para onde voltar, e privada de esperança, ela pintava como um soldado, obstinada e exausta.
Assim como as oliveiras que nos cercavam, que florescem e aumentam a produtividade diante do estresse hídrico (leia-se período das secas), resistia com dignidade e vigor.
Como ultrapassar a tentação de cultivar a reatividade e a indignação?
Fui percebendo que estávamos juntas na solidão de nossas práticas quase monásticas, em que o choque de contemplação sóbria nos desafiava de formas diferentes.
Meu vício em intensidade ia sendo testado naqueles dias penosamente longos e lentos, em que não me sentia merecedora de qualquer alegria. Escrever não fica mais fácil com a insistência nem com a supervisão alheia, e muito menos com a autoexigência devoradora.
Para piorar, o contato tão próximo com a desgraça não me ajudou a me desidentificar dos meus dramas – apenas passei a desqualificá-los.
Por outro lado, pude notar que a minha colega de residência era capaz de apreciar com frequência a natureza local, de cozinhar generosamente para todos, e mostrar fotos da filha, também refugiada, que estava morando na Moldávia. Era como se dissesse: minha vida ainda tem coisas boas. Mesmo sem chão, tenho raízes. E asas.
Qual sentido podemos extrair para atravessar o nosso deserto pessoal rumo ao futuro?
Num cenário de absoluta falta de perspectivas, apenas o corriqueiro e o momento presente são possíveis. Trivialidades, neste contexto, revelam profundezas, mostrando que a tragédia sempre oferta a chance do recomeço.
Depois de passar semanas ressentida, sentei pela última vez na cozinha da residência artística, contando os segundos para partir. Minha colega me viu e ficou ao meu lado, em silêncio.
Comecei a chorar copiosamente, como se pudesse por um instante entender a dor dela. Ela se levantou e voltou com um ímã de geladeira, me presenteado com uma pintura da Ucrânia. No meio daquela aridez, a delicadeza, o cuidado e o afeto enfim irrigaram a minha alma, então ressecada como um craquelê.
Eventos trágicos como guerras e catástrofes climáticas são catalisadores da busca por sentido, e também podem inspirar ações concretas de mudança e resiliência coletiva. O que nos torna humanos não é o suposto controle das adversidades que nos acometem, mas a busca universal pelo sentido à luz do que nos acontece.
Um certo tipo de mundo está claramente acabando. Buscar sentido é ultrapassar o que está manifesto; uma escolha consciente de transcendência do presente desfavorável.
É acolher o deserto e o inferno, é olhar para o alto, mas também para o profundo. Ademais, é um dom e um hábito criado a partir do trabalho, do amor, e do sofrimento. Esta é uma liberdade possível e acessível. Estamos impregnados de futuro, mas de qual? Para escrever – e viver – é preciso imaginar.
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