Memória de sabor
O lugar onde vivemos, as pessoas com quem nos relacionamos, são essenciais para a gente criar algo importante para o nosso futuro hábito alimentar, nossa memória de sabor
O lugar onde vivemos, as pessoas com quem nos relacionamos, são essenciais para a gente criar algo importante para o nosso futuro hábito alimentar, nossa memória de sabor
Minhas férias de verão da infância eram passadas na casa da minha avó Ester. Talvez isso não tenha nada de muito relevante a não ser pelo fato da minha avó morar em Recife e eu em São Paulo. Detalhe, a gente não fazia a viagem São Paulo-Recife de avião, mas de carro. Meu pai tinha uma caravan branca, que meus amigos da escola adoravam chamar de ambulância – o fato do meu pai ser médico e andar sempre de roupa branca também ajudava a fazer o apelido ganhar força.
Eram três dias de estrada com os três filhos no banco de trás. E, dentro de um espaço tão restrito e meu pai fazendo pouquíssimas paradas, não havia muito o que fazer a não ser apreciar a paisagem, literalmente. Acho que o meu gosto de perceber as coisas, de observar os detalhes – das paisagens aos cheiros e sabores – veio dessa época. Eu chegava na minha avó e sentia aromas: de caju, pitanga, tapioca, carne de sol, manteiga de garrafa. Foi na cozinha dela que aprendi a apreciar um tempero que muita gente detesta: coentro.
Um ingrediente chamado cominho
Outro aprendizado desse tempo foi entender que os ingredientes e temperos de um lugar tem a ver com a história, com a região, com as pessoas. E experimentar tudo isso como parte da sua própria história faz com que você crie uma memória de sabor importante. Para a vida. Lembro de um dia, almoçando com umas amigas e provando empanadas argentinas, comentei que certamente havia cominho no tempero – outro ingrediente presente na cozinha nordestina. Todas me olharam curiosas, sem entender como eu podia saber disso? Eu sabia porque tinha a ver com as minhas vivências de infância.
Sabores extremos
Exatamente por isso, me encantei com o programa Sabores Extremos, do chef britânico Gordon Ramsay, transmitido pelo canal da TV a cabo National Geographic. A ideia é que Gordon se conecte com as pessoas e com os lugares por meio da culinária. E Gordon faz isso muito bem e com o devido respeito pela cultura alheia. Ele nunca vai para grandes capitais, mas para cidades menores, lugares longínquos. Conversa com as pessoas simples dali para entender como os pratos são feitos – muitos têm modos de fazer ancestrais. Ouve e observa antes de colocar a mão na massa. E, ao final de todos os episódios, ele prepara uma refeição para as pessoas do lugar – ele e um cozinheiro local. E os convidados precisam dizer quais dos pratos típicos preferem: os preparados por Ramsay ou por alguém da região. O mais interessante é perceber como, por mais que Ramsay se esforce, ele dificilmente consegue agradar em todos os pratos. Há sempre aquele em que falta uma dose a mais de algum ingrediente típico, até então algo desconhecido do chef.
Alimento é mais do que um modo de fazer
Isso me faz perceber que, por mais que a gente tente reproduzir um prato, é muito difícil fazer isso na sua integralidade. Nem toda receita é capaz de transmitir com exatidão a experiência que aquele prato produz nas pessoas. Isso porque um alimento é mais do que um modo de fazer. É um conjunto de elementos. E o mais importante deles, acredito, vem da nossa raiz, da nossa história, memória e do tempo de convívio. Dá para reproduzir com exatidão o cardápio de uma cultura diversa da sua? Sim, para isso é preciso uma dose de respeito enorme, de observar e ouvir – as pessoas e suas histórias.
As viagens na caravan branca do meu pai, me ensinaram muito mais do que o exercício da paciência em percorrer grande distâncias em um carro. Elas me ensinaram que existem muitas realidade e culturas num mesmo país, que é preciso respeitar isso e que eu, de uma maneira muito bonita, carrego tudo isso dentro de mim. E isso tem a ver não só com a comida, mas com a vida. Respeitar o outro é entender a sua história, as suas raízes. É isso que nos torna mais ácidos, doces, agridoce. Na próxima coluna, aproveitando esse tema, vou contar a minha experiência em fazer, pela primeira vez, o mac cheese, o famoso macarrão com queijo americano.
Até já.
Ana Holanda é diretora de conteúdo da Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.
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