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Índia: do prato ao templo
André Mafra/ Arquivo pessoal
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Em mais um texto sobre a minha última jornada para a Índia, quero lhe apresentar um interessante passeio turístico que talvez você nem saiba que existe. Trata-se de uma visita guiada a uma fazenda que, na verdade, é uma propriedade em que se plantam especiarias diversas e onde tiveram a curiosa ideia de reservar um pequeno pedaço de terra para a visita de turistas.

Nessa parte, concentram-se muitos tipos e espécies que nos permitem descobrir plantas que, na maioria das vezes, ocidentais nunca viram na vida. Que tal conhecer uma árvore de canela, um pé de noz-moscada, uma orquídea de baunilha ou uma trepadeira de pimenta-do-reino?

De Vasco da Gama até André Mafra

No meu livro Sabores & Destinos, relato com detalhes a saga dos navegantes europeus em busca das caras e famosas especiarias das Índias. Um movimento que cresceu a partir do século XIV com os portugueses, inicialmente buscando contornar a África para atingir o destino, e os espanhóis com Colombo, tentando chegar via oeste pelo mar. 

Mas, muitos séculos antes, gregos e romanos já tinham em seus contextos culturais o uso de especiarias como um elemento de distinção social. Isso foi ainda mais salientado na Alta Idade Média, quando Marco Polo, em seus relatos de viagem, fascinou os europeus com suas fantasiosas, mas muitas vezes realistas, descrições da Ásia.

O fato é que buscar especiarias na Índia não era novidade na História da humanidade e, uma vez mais, lá estava outro gringo, que tinha vindo de muito longe, fascinado com a possibilidade de comprá-las a preços bem em conta e também conhecer as árvores, arbustos e outras plantas que, ainda em nos dias de hoje, não são comuns de ser encontrar em outros países.

Por que as especiarias eram uma mercadoria maravilhosa para o comércio?

Simples: para não estragarem e durarem mais, elas eram desidratadas e comercializadas secas. Por sobre camelos cruzando desertos, por rotas perigosas a pé e também pelos oceanos, as especiarias precisam chegar ao seu destino com seus sabores e aromas ainda vigentes. 

A questão é que, desde os tempos de Cabral, eternizado como “descobridor”, ou “achador” do Brasil, o mecanismo ainda se mantém, pois as especiarias que compramos nos mercados não se desenvolvem e crescem se as plantarmos.  Tratava-se de um comércio muito lucrativo, menos perigoso que o de ouro e pedras preciosas e, do ponto de vista dos comerciantes, muito vantajoso. Experimente plantar as sementes de pimenta-preta ou cardamomo, noz-moscada ou cascas de canela; elas obviamente não crescem e você precisa voltar a comprar! 

Por séculos, as nativas especiarias que se desenvolviam feito mato no Oriente eram extremamente desejadas e valorizadas fora de lá. Do século XVII em diante, depois da Península Ibérica, com o início de sua expansão colonialista com holandeses, franceses e ingleses, uma verdadeira batalha botânica foi travada para que as plantas das principais especiarias conseguissem se aclimatar nos quintais das potências europeias. Há registro de tentativa de aclimatar o gengibre indiano no sul da Bahia, já nas primeiras décadas do século XVI.

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Goa, ponto de partida para a fazenda de especiarias 

A antiga região que foi estado português na Índia deveria ser destino obrigatório de todos os turistas portugueses e brasileiros. Atualmente, um dos menores estados do país, Goa virou sinônimo de rota de praias para muitos indianos que buscam relaxar, ir a festas eletrônicas ao norte de Panjim ou nos grandes resorts de luxo ao sul.

Passear nas ruelas de Old Goa e visitar suas igrejas é algo emocionante e, ao mesmo tempo, estranho. Algo similar também senti quando visitei Macau, na China, outra região de influência lusitana no Oriente. Alguma coisa nos parece semelhante, mas não faz sentido, por outro lado. É uma bagunça que precisa ser visitada. Goa, por si só, merece um artigo à parte, que em breve será escrito. Portanto, vamos nos ater à minha busca por especiarias na região.

Demoramos a chegar à spice farm plantation. De onde estávamos, ao sul de Goa, levamos quase 2 horas, mas foi um deslocamento agradável. Após uma parada na pista e um giro para a direita, eu me deparei com a intrigante placa daquele refrigerante de líquido preto e docinho, cheio de gás, que serviu para nos avisar que havíamos chegado ao nosso destino.

Placa vermelha com propaganda da coca cola. Ao lado esquerdo, um homem bebe uma coca com algum letreiro em verde na parte de baixo.

Entrada do Spice Farm em Goa. Foto: André Mafra/ Arquivo pessoal

Após cruzar uma linda e singela ponte sobre um belo lago rodeado por mata nativa, chegamos à recepção onde começou o curioso tour. Que emoção! Será que eu estava vivendo uma cena minimamente semelhante à que aconteceu em vilarejos de Cochin ou Calicute, mais ao sul, em pleno século XVI, onde originalmente os portugueses travaram seus primeiros contatos com comerciantes de especiarias? 

ponte de madeira com passagem para pedestres sobre um rio.

Ponte do Spice Farm. Foto: André Mafra/ Arquivo pessoal

Fomos levados para conhecer os mais diversos tipos, com o apoio muito competente de nossa guia, que educadamente respondeu a todas as nossas perguntas, enquanto lutava para manter a atenção daquelas crianças adultas no arbusto de cardamomo ou na árvore de canela.

Destaque para os pés de cardamomo verde com arbustos delicados contrastando com os de folhas maiores do cardamomo negro. Também gostei da árvore de noz-moscada e seu fruto verde fresco que não conhecia, afinal, em nossas terras, temos apenas a semente que ralamos ou – conhecido por alguns poucos estudiosos – o macis, que é o seu invólucro.

foto de uma planta com folhas verdes, frutos verdes e a vegetação.

Cardamomo fresco na fazenda de especiarias, Goa. Foto: André Mafra/ Arquivo pessoal

Passamos também pela orquídea da baunilha que, vale destacar, não é originária da Índia, mas sim das nossas américas. O Brasil possui várias espécies nativas de grande qualidade.

Um tempero sagrado e reverenciado como tal

O manjericão é daqueles temperos, com uma enormidade de variações, mas a indiana, chamada tulsi, é uma das mais importantes, quando pensamos no manjericão para algo além do nosso prato. Trata-se de uma erva especial, divinizada na cultura hindu: acredita-se que a presença de um pé de tulsi no quintal de uma casa pode trazer proteção e sorte, além de várias propriedades medicinais que chegam a soar exageradas. O fato é que o tulsi é uma parte relevante da tradição indiana.

uma mulher com vestimentas na cor rosa está em frente a uma área verde com flores.

Pújá ao Tulsi, fazenda de especiarias, Goa. Foto: André Mafra/ Arquivo pessoal

Para saber mais sobre as diferenças entre especiarias, condimentos e ervas aromáticas leia o artigo: É tudo tempero? As diferenças entre condimentos e ervas aromáticas do André Mafra.

Em visita à fazenda de especiarias em Goa, tive o privilégio de travar contato com o rito de uma senhora em torno do pé do tulsi que estava no meio de seu quintal, onde um pequeno altar estava edificado. Incenso, flores, velas e orações em torno da planta formam parte dos bonitos ritos de manifestação da tradição cultural hindu. Esses pequenos altares são comuns em muitas casas indianas e templos, especialmente, nas áreas rurais e em vilas do interior.

Nos ashrams hindus dedicados ao Deus Vishnu e, consequentemente, a Krishna, o manjericão tulsi é muito popular. A beleza e o crescimento da planta podem ser considerados um indicativo de um maior ou menor grau da fé dos devotos daquele local. Há outro item que não pode faltar e sempre está muito presente nessa tradição cultural: os málás.

Não é bem o que você pensou; não se trata de algo para você carregar suas coisas e  viajar, mas sim, de um cordão que se usa para fazer mantras e seu nome é japamálá. Significa cordão de repetição e é geralmente feito com uma semente bastante famosa e cara chamada rudráksha (se for barata, desconfie: deve ser falsa).

Para se ter uma ideia do prestígio do tulsi, seus galhos foram também adaptados para produzirem málás. No lugar dos rudrákshas, usam-se pedacinhos de galhos do arbusto para formar o que se chama tulsi málá. Interessante, não é mesmo?

Não é novidade aqui minha defesa enfática sobre o quão forte é o paradigma do uso de condimentos, temperos e ervas na tradição indiana. Para nós pode até parecer exagerado, mas o fato é que as especiarias estão imiscuídas em toda a tradição cultural, inclusive em templos, sendo até divinizadas. É uma relação complexa e antiga, que precisa ser respeitada, e não necessariamente entendida.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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