A potência de ser mulher – que talvez você tenha esquecido
Nessa coluna, Marcela Varasquim conta como a perda do seio e dos cabelos após a descoberta de um câncer foi um atalho para se encontrar com a própria essência.
Meus dias não precisam de muito para serem poesia. Hoje mesmo abri os olhos determinada a enxergar o sol. Ele não estava abundante, mas eu o via. Eu cavava as nuvens de chuva com o olhar, pedia licença aos prédios ao redor que insistem em tampar a vista, e encontrava, atrás do vidro escurecido da janela, o sol.
Tenho procurado sol nos dias frios e confusos. Quando não o vejo gritando no céu, busco pistas sobre seus raios dentro de mim. Ao invés de esconder feridas, jogo água quente para que borbulhem. E de tanto doerem, uma hora viram vapor e se dissolvem no vento.
Não dou remédio para angústias – e esse tem sido meu maior ato de coragem. Sei que elas estão acobertando meu sol. Empurrá-las com um sopro de disfarce me traria o sorriso dos dias quentes, mas nunca o verão inteiro. E eu descobri que sou preciosa demais para me contentar apenas com céu encoberto por muitas nuvens.
Mudança de rota
Um ano atrás, eu fui ferida como mulher. Não que isso já não tivesse acontecido antes. Mas dessa vez, o machucado aparecia no espelho. O seio que esteve por trinta e dois anos no meu corpo levou um golpe do imprevisto, e foi substituído por uma prótese e uma cicatriz. Seria o maior tiro no peito já dado no meu feminino. A vida apertou esse gatilho, mas eu me abaixei a tempo de não ser atingida.
Uma mulher nasce duas vezes na vida: a primeira, no parto da mãe. A segunda, quando se conhece. Uma mulher que não se conhece se permite ser arrancada de si mesma, se perde na solidão de caminhos vazios quando tenta se empoderar. Quando não consegui encontrar beleza no espelho, descobri que o verdadeiramente belo não estava na efemeridade dos reflexos.
Estava escondido na mulher que gritava em silêncio dentro do meu coração, e que eu havia sufocado com o travesseiro das limitações.
No espelho me faltava um seio, e no mês seguinte me faltou também cabelo. Foi o mais perto que cheguei de ser homem, e não consegui me encontrar. Sabia que por um bom tempo não haveria outros caminhos. Uma peruca poderia enganar os olhares curiosos na rua, mas nunca embaçaria a minha própria visão.
Na hora de dormir, seria eu comigo mesma. Quanto mais transparente ficava meu oceano interno, menos eu admitia acreditar nos meus próprios disfarces.
MAIS DE MARCELA VARASQUIM
– “Feliz Ano Novo, você está com câncer”
– O que muda ao nos depararmos com a finitude da vida
Autoconhecimento
A solução foi aprender a nadar em mim. Nesse mergulho vi toda a força que os músculos do meu braço nunca conseguiram atingir. E de pensar que tantas vezes já tentei aumentar os pesos na academia, achando que essa seria a prova do meu vigor! Nesse mergulho eu arranhei meus pés inúmeras vezes nos corais, e mesmo assim, nunca desisti de ir mais fundo.
Encontrei litros incontáveis de resiliência escondida nos cofres de navios que eu mesma naufraguei, por não saber quem eu era. As ombreiras que usei para dissimular grandeza, as atitudes que tomei para parecer firme – nada mais faz sentido. Eu já era forte e resiliente naturalmente sem precisar vestir as máscaras do masculino.
Nesse oceano que é ser mulher, eu descobri a paciência dos que aceitam os desafios com resignação, mas nunca com apatia. Vi a coragem dos que levantam da cama, lavam o rosto e ajeitam a postura para abrir a porta imprevisível do novo dia.
Encontro comigo mesma
Eu vi nas águas o reflexo do que restou de mim, após expulsar preconceitos, crenças e caixas nas quais tentaram me prender. Lembro-me de soltar um sorriso: agora sim, sou dona da caneta que conta minha história.
Eu me despedacei e me refiz muitas vezes até o dia em que marquei um encontro comigo mesma, e em vez de inventar desculpas, eu fui. Por isso não atendo mais a porta para possíveis enganos, não entro em aviões sem saber o destino, nem aceito turistas no meu coração.
Eu caminho meus próprios passos com serenidade e, ao mesmo tempo, com firmeza. Nas subidas mais íngremes, aceito a ajuda de quem estende a mão, mas não entrego o braço sem antes conhecer muito bem o rosto. Nesse oceano que é ser mulher, eu aprendi a assumir meu próprio leme. Agora sinto que posso o mundo inteiro.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login