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Seja você mesmo
Alex Bertha
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Em 20 de janeiro de 2021, uma jovem negra participou da posse de Joe Biden, 46º presidente dos Estados Unidos. Trajando um casaco amarelo, vivo como o sol do meio-dia, a poeta Amanda Gorman, 23 anos, recitou por seis minutos um poema lírico de sua autoria: “A Montanha que Escalamos”. Além da lufada de esperança num futuro melhor, milhares de pessoas enxergaram a essência da convidada eclipsar o protocolo

Talvez essa seja uma das nossas maiores buscas: ser quem somos de verdade, transbordar nosso eu autêntico, do jeitinho que ele é. Abstrato demais? Pode ser que sim, pois essa conversa flerta mesmo com o intangível e desafia a ânsia de angariar respostas concretas para as nossas inquietações. A mente martela: Como é possível nos apropriar da nossa natureza original se ela não tem uma forma palpável, se ela é um jeito absolutamente próprio de nos movimentar pela vida? 

“É seu direito e obrigação ser quem você realmente é. O melhor que pode acontecer é que você se torne alguém autêntico”, provoca o psiquiatra e psicoterapeuta argentino, Jorge Bucay, autor de diversos livros, como Quando me Conheci – Quem Sou? Aonde Vou? Com Quem? (Sextante). Se Bucay diz isso com tanta segurança, é porque a gente pode encontrar maneiras práticas de reconhecer e manifestar nossa essência. Assim, o que antes era um mistério distante do cotidiano se torna nossa fragrância diária. 

A sabedoria védica ancestral, por exemplo, sustenta que todos nós somos dotados de uma constituição única, que começa a se formar no instante da nossa concepção. Ela se chama prakriti. O filósofo Platão, por sua vez, defendeu a existência de um Eidos, a verdadeira realidade, pulsando em tudo e em todos. O psiquiatra suíço Carl G. Jung navegou na mesma direção ao afirmar que nossa essência reside no Self, uma dimensão profunda e central de nós mesmos, que rege nossa evolução. 

Cada um precisa descobrir como se alinhar ao que se é. Vamos, juntos, atrás das possibilidades. Para a ayurveda, a medicina milenar indiana, nós somos um microcosmo dentro de um macrocosmo, ou seja, somos feitos dos mesmos elementos que compõem o Universo: ar, éter, fogo, terra e água. A conta é simples. Se no planeta vivem cerca de 7 bilhões de pessoas, isso significa que coabitam cerca de 7 bilhões de combinações desses elementos. Uma diferente da outra. Temos, portanto, dentro de nós, uma bússola pessoal apontando o caminho de volta para a casa da nossa alma. “Nossas escolhas, hábitos e interações na vida, como sentimos, absorvemos e digerimos os acontecimentos, vão determinar se teremos mais ou menos harmonia em relação à nossa real constituição. Quanto mais de acordo com a nossa natureza a gente vive, mais equalizados esses elementos ficam em nós, e vice-versa”, explica Giedre Benjamin, terapeuta ayurveda. 

Com o amadurecimento, ela prossegue, a tendência é que nossa percepção se aguce e saibamos identificar com facilidade o que calibra a sintonia com nossa constituição única. Os alimentos que aumentam a nossa vitalidade, as práticas de autocuidado que nos trazem centramento, os ambientes e as pessoas que despertam em nós a sensação de encaixe e fluidez. “O grande referencial é o bem-estar físico, mental e espiritual. Nesse sentido, é fundamental observar como estão nossas reações, como está nossa digestão para as coisas que vemos e lemos, quais são as nossas buscas, o que realmente nos preenche”, orienta. 

Suas sensações são guias confiáveis. Sinta o que elas estão comunicando. Talvez você perceba que o caminho para a sua real natureza não precisa ser tão concreto como sua mente o faz pensar. “Quando você está em seu estado natural de ser, que poderia ser descrito como pacífico, amoroso e contente, está em seu estado de veracidade. É por isso que a verdade é um estado de ser, e não um conjunto de palavras, ideias, teorias ou filosofias”, escreve o orientador espiritual Mike George, em Sendo Você Mesmo (Vozes). 

Aventura para a vida toda

É cativante saber que podemos colaborar para o desabrochar de quem somos, seja por meio do autocuidado, seja pela exploração do inconsciente e da intimidade com a nossa alma. “O ego tem como missão realizar nossa essência por meio de situações desafiadoras ao longo de toda a vida. Descobertas constantes dos níveis de consciência dentro de nós vão se manifestando nas formas criativas com que respondemos às questões da vida”, afirma a psicoterapeuta junguiana Elisabete Lepera. 

Acontece que, não raro, nossa essência está desalinhada com o meio em que vivemos. Pudera. Cobranças, pressões e seduções nos acertam a todo momento. Não é de se estranhar que tanta gente fique cega para a sua real natureza. “Por isso, expressá-la nos convoca a superar padrões ou modelos de comportamento. Além disso, muitas vezes, nossa essência ilumina as sombras, os medos familiares e coletivos”, complementa Elisabete. 

Resistência à vista. Pode ser que a jornada para expressar e viver inteiramente o chamado da alma seja desafiadora. Mas não desanime, pois, como afirmou Jung: “O que somos verdadeiramente tem o poder de nos curar”. Também não tenha pressa. O alinhamento e a conexão com nosso eu profundo, cerne do processo de Individuação, na linguagem junguiana, é uma aventura para a vida toda. “Torna-te quem tu és.”

Está ouvindo ecos do filósofo Nietzsche? Claro que nesse percurso rumo à verdade do ser haverá incoerências, desajustes e desequilíbrios. Vamos nos aproximar e nos afastar de nós mesmos muitas vezes. O importante é retornar ao centro e prosseguir. Como quando nos distraímos na meditação e convidamos gentilmente nossa atenção a se engajar de novo na prática. O bonito é que cada forma única de ser pode iluminar tanto o percurso individual quanto o plano maior. Qual é a sua contribuição particular? “Cada gesto feito a partir da essência, da alma, pode inspirar e transformar o viver coletivo”, encoraja a psicoterapeuta. Mike  George  pensa  o  mesmo:  “Estamos aqui para dar a energia de nosso ser. Quando fazemos isso, nos sentimos conectados e em harmonia com os outros. Simplesmente essa é a nossa natureza”. 

Autenticidade tem limites

É preciso acrescentar que os relacionamentos são fundamentais na busca pela nossa verdade, pois nos servem de espelho a refletir nossos gestos e também de alavanca para nos tornar quem somos. Por meio da alteridade, dimensionamos nosso tamanho e reconhecemos nossos matizes. Ganham nitidez o que ainda nos falta desabrochar e o que já conseguimos expressar da nossa realidade mais essencial. Mas há um porém. Ser autêntico perante os outros não significa falar tudo o que vem à boca, doa a quem doer. “Afinal, eu sou assim.” 

Carolina Nalon, mediadora de conflitos e fundadora do Instituto Tiê, pode nos ajudar nessa calibragem. Antes de tudo, ela entende a autenticidade como uma prática, já que a todo momento somos convidados a ser autênticos ou não. Se algo o incomoda, você diz que está incomodado? Você costuma concordar com coisas para as quais você teria uma outra elaboração? Ri de piadas, que para você não são engraçadas, só para deixar o outro confortável? Situações como essas colocam à prova nossa capacidade de sustentar nosso eu genuíno na interação cotidiana. Em que estágio de autenticidade você se encontra? “Não dá para dizer que uma pessoa é 100% autêntica o tempo todo, porque muitas vezes prevalece nosso senso de pertencimento. Agora, viver uma vida inteira querendo satisfazer essa necessidade, sem assumir quem se é, faz com que as pessoas aceitem a nossa versão que está se adaptando para pertencer, e não quem a gente é de verdade”, alerta Carolina. 

Outro mito a ser demolido: autenticidade não é sinônimo de “sincericídio”. Ser você mesmo não pressupõe falar tudo o que pensa. Até porque nossa cabeça é o domínio dos julgamentos e dos modos de pensar binários: gosto, não gosto, isto é bom, isto é ruim. Pode ser desastroso externar essas posições sem uma reflexão mais cuidadosa. “Mais vale situar o outro dizendo a ele como você se sente, o que é importante para você; enfim, explicar como as coisas o afetam e quais são suas reais necessidades”, pondera a mediadora. Isso não quer dizer que você precisa se posicionar sobre todos os assuntos, seja em conversas privadas, seja em redes sociais. Mas, claro, há temas gravíssimos, que clamam por mudanças, e que, por isso, merecem o nosso posicionamento. Recolher-se, se essa é a sua inclinação natural, também pode ser um alinhamento com a sua essência. 

Na  verdade,  quando  a  autenticidade permeia as relações, existe espaço para a transparência e para a espontaneidade. Na visão de Mike Robbins, autor de Seja Autêntico: Outras Personalidades Já Têm Dono (BestSeller), é dessa forma que as trocas ganham sabor e consistência. “Quando somos autênticos, somos também vulneráveis, atentos, abertos, curiosos e honestos. Temos contato com nossos pensamentos e sentimentos, dúvidas e medos, sonhos e paixões.” Segundo ele, isso nos deixa soltos para buscar as coisas que realmente desejamos, sem nos podar na hora de comunicar o que realmente sentimos e pensamos. Um exercício contínuo de autoescuta, de entendimento do que sentimos e precisamos.

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Já deu vontade de largar cada uma das suas faces postiças, que não refletem seu verdadeiro eu? Pode ser que seu ser genuíno esteja escondido sob muitas camadas que se sobrepuseram no decorrer dos anos. Quem você acha que tem que ser, quem dizem que você deve ser, quem você daria tudo para ser. Todos menos você. Porque, em algum momento, deve ter prevalecido a sensação de que a sua natureza era, em alguma medida, falha, insuficiente, desajustada. Aos olhos de quem? Eis a questão! 

“Quando começamos a nos livrar das noções negativas, limitadoras e equivocadas que nos fazem ser menores do que deveríamos ser, damos um passo à frente rumo à grandeza de assumir quem realmente somos”, escreve Robbins. Porém, temos de estar preparados para os julgamentos e reações das pessoas, que podem desaprovar a fidelidade a nós mesmos. Para alguns, essa pode ser uma experiência de vulnerabilidade. Se for o seu caso, não se afobe. 

O caminho da nossa verdade é uma alquimia interior. Dê a ela tempo para encorpar. “A capacidade de sermos verdadeiros deve e vai se aprofundar à medida que efetuamos nossa jornada pela vida, se tivermos consciência disso”, avisa Robbins. Felizmente, à medida que desnudamos nossa essência, nos sentimos mais confortáveis e confiantes em nossa própria pele. “Vamos despindo as personas, projeções e preconceitos que alimentam medos e identificações que mais imitam comportamentos alienantes do que revelam potenciais transformadores”, analisa Elisabete. Até que chega o dia em que realmente gostamos do que nos é peculiar e merece ser apreciado. Um dia para ser celebrado. O seu ser é valioso e você reconhece isso. Então começa a substituir o impulso de agradar aos outros, com a finalidade de se sentir aceito e amado, pelo prazer insubstituível de se mostrar por inteiro e, assim, revelar ao mundo o que só você traz consigo. 

A autenticidade é, sem dúvida, um exercício de libertação. Carolina Nalon é dessas pessoas que viveram para dar a essa afirmação a veracidade que ela merece. “Quanto tempo eu passei sem contar para ninguém que sou lésbica? Foi muito difícil. Poder falar disso sem ser execrada é libertador”, ela desabafa. A poeta Amanda Gorman também está empenhada em honrar o chamado do seu ser autêntico, a despeito do que os outros possam achar.  “Estou me silenciando  menos  e  aumentando  o  volume, me inclinando para o que me torna quem eu sou: poesia, livros, criatividade, ensino, ativismo. Quero ser eu mesma e nunca  comprometer isso”,  ela  partilhou em entrevista recente à comunicadora estadunidense Oprah Winfrey. 

No livro As Histórias que me Ensinaram a Viver (Sextante), Jorge Bucay narra a saga insólita de um homem que também descobre a liberdade de ser ele mesmo. Antes, porém, o sujeito atravessou dias infernais por depender da validação alheia. De repente, as pessoas passaram a tratá-lo como um desconhecido. De decepção em decepção, ele, primeiro, se exasperou, achou que tinha enlouquecido; depois, se fortaleceu a ponto de não mais precisar do olhar dos seus pares para apreciar sua essência. Por fim, o personagem “nunca mais teria que pedir a alguém que o definisse, nunca mais sentiria medo de ser rejeitado, nunca mais se esqueceria de ser quem era”.

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