A delicada arte de pedir
Em geral, pedimos com facilidade qualquer coisa sem importância, mas temos medo, receio da recusa quando é algo que realmente nos toca. Entenda como deixar para trás esse sofrimento.
Antes de ser uma celebridade do rock, a americana Amanda Palmer ganhava a vida como estátua viva nas ruas de Boston (EUA). Com o rosto pintado de branco, luvas de cetim e um vestido de noiva vintage, cuja cauda encobria um engradado de plástico, ela se equilibrava, imóvel, por horas. E o que fazia alguém deixar uns trocados num chapéu aos pés dessa mulher de branco aparentemente com 2,40 m? Apenas as flores que ela oferecia de volta? Certamente não.
Na sua mudez e imobilidade, Amanda exercitava a arte de pedir sem solicitar isso explicitamente com palavras. Com seus olhos azuis, ela entrava em conexão com quem a via. E criava um diálogo interior com a pessoa, com a certeza de que, se ela dissesse as coisas com volume suficiente dentro da própria cabeça, a mensagem transbordaria pelos olhos. E esse era o diálogo que Amanda imaginava acontecer enquanto estava imersa em seu silêncio. Ele foi descrito no seu livro A Arte de Pedir (Intrínseca).
“Oi”, ela cumprimentava em silêncio o passante diante dela. Piscava o olho para ele e encarava detidamente seu novo amigo humano enquanto ele a observava. E, quando, mediante seu olhar profundo, ele finalmente punha algum dinheiro no chapéu aos seus pés, Amanda cravava os olhos nele e pensava: “Obrigada (piscada). Aqui. Pegue uma flor (piscada)”. E os olhos dela ainda diriam para ele: “Obrigada, estou vendo você”. E os olhos do amigo humano diante dela confessariam: “Nunca ninguém me vê. Obrigado”.
Amanda podia pedir sem constrangimento. Estava ali por horas no seu vestido vaporoso, no frio, calor ou chuva, só para dizer que aquela pessoa era importante, e que na massa uniforme dos homens e mulheres que passavam por ali, ela a distinguia perfeitamente do resto. Era um resgate do anonimato, da invisibilidade em que a maioria de nós vive mergulhada sem perceber.
Amanda tem alma de artista, e esse é um presente inestimável nascido da sensibilidade de uma artista. Com essa oferta, ela devolvia humanidade e individualidade para quem a observava e, exatamente por isso, ela merecia gratidão. Os diálogos imaginários dela com os passantes, inclusive, me fazem lembrar de uma pesquisa recente sobre o anonimato daqueles que vivem ou trabalham nas ruas, como lixeiros, carroceiros ou ambulantes, e o quanto a invisibilidade os machuca. Numa cidade grande, ninguém os cumprimenta de manhã, sorri ou olha em seus olhos. E é essa dor tão humana da falta de reconhecimento da presença do outro que Amanda cura e alivia ao dizer internamente:
“Eu vejo você, você é real e existe para mim”. As moedas, deixadas no chapéu, revelam o quanto aquela pessoa é grata. E esse sentimento vem da conexão, da troca silenciosa, que a revelou como alguém único, merecedor de atenção e respeito. As flores que Amanda oferece são também prova do seu agradecimento. Trocam-se presentes ali. No fundo, não se pede nada realmente.
Essa mesma visão aprendida nas ruas alicerça o pedido que fez, anos depois, para que os fãs de seu trabalho como cantora de rock financiasse o segundo álbum de sua banda. Isso aconteceu logo após a gravadora tê-la dispensado por considerar baixo seu volume de vendas de CDs: 25 mil unidades. Blogueira e tuiteira ativa – e realmente presente na vida dos fãs –, Amanda se utilizou dessa rede para reunir o dinheiro necessário para produzir o CD e financiar a turnê.
A ferramenta para isso foi o sistema de crowdfunding, ou financiamento coletivo, uma espécie de vaquinha virtual, que estava dando seus primeiros passos em 2012. Ela arrecadou cerca de 1,2 milhão de dólares com seu pedido sincero, quantia bem superior à que necessitava. E o raciocínio era o mesmo da época em que atuava como estátua viva: “Sou uma artista, se você gosta do que eu faço, me ajude a gravar um disco. Muito obrigada. Vou deixar o link na internet gratuitamente, e todos poderão baixá-lo”. Uma postura honesta, íntegra, sem culpas desnecessárias, sentimentos de inferioridade, medo ou vergonha.
E aqui vamos aprender a primeira lição da delicada arte de pedir: o seu pedido tem de ser e parecer justo, não só para o outro, mas, principalmente, para você mesmo. No fundo, um pedido justo é uma troca, na qual você me ajuda agora que eu vou lhe devolver dessa ou daquela forma depois. Ou não vou poder devolver, mas você vai saber disso.
“Para pedir com segurança, você deve estar convencido da honestidade e justeza do que vai solicitar, e de como pretende devolver essa ajuda, mesmo que simbolicamente (mas isso também deve ficar claro). Isto é, você tem de falar com base na sua verdade e autenticidade e não mentir ou enganar. Isso vai lhe dar calma e confiança para pedir o que for”, diz a psicoterapeuta paulista Ana Maria Viegas, especialista em movimento e gestos corporais. “E essa convicção precisa estar ancorada no seu corpo. Não adianta ter uma voz segura num corpo encolhido que traduz sentimentos de medo, culpa ou vergonha”, diz. A postura, o ritmo e o tom da voz – ou seja, todo o seu ser – precisam estar presentes no seu pedido de maneira integrada. “Você pode fazer isso olhando nos olhos do outro e com a espinha ereta, sem parecer arrogante ou exigente, mas sim firme, autêntico, honesto e sereno.”
Para isso acontecer, é necessário sermos claros. “Por isso é bom responder anteriormente dentro de nós mesmos as perguntas que podem surgir na cabeça do outro: ‘Por que estou pedindo isso? Com que objetivo? O que vou fazer se o pedido for aceito? Quem mais vai se beneficiar com esse auxílio? Como vou me comprometer e quando vou poder devolver essa ajuda?’”, continua a terapeuta.
“Temos de ser precisos. Todos os nossos motivos e razões precisam estar bem nítidos dentro de nós. Isso ajuda a nos dar segurança e também a quem potencialmente vai atender o pedido”. Acalmadas as dúvidas e resolvido o assunto internamente, a questão se encerra e ficamos mais tranquilos. Até o corpo pode assumir uma postura menos tensa, e a respiração torna-se menos ansiosa.
É igualmente necessário deixar bem claro para nós que ninguém é obrigado a atender o que desejamos. Uma negativa sempre pode acontecer, e vamos levar essa realidade da vida o mais naturalmente possível, por favor. “Não precisamos nos abalar demais com um não. Imagine quantas negativas artistas, inventores ou escritores tiveram de escutar antes de terem seus trabalhos aceitos.” Diante de uma rejeição, podemos agradecer formalmente e partir para outra, sem murchar como um boneco inflável. E é óbvio que isso depende da sua confiança, do seu lastro interno, o próximo ponto a levar em consideração.
O valor da confiança
Como a vida, ou o destino, se comportam com você? Você acredita que tem sorte? Ou acha que tem marés de sorte e azar e que é possível detectá-las? Ou, quem sabe, sempre desconfia do que vem pela frente, pois geralmente coisa boa não é? Não importa muito a resposta, pois ela, certa ou errada, sempre será uma crença. E boa parte da nossa vida é alicerçada nisso. Só que algumas crenças ajudam e outras vão levá-lo para um buraco sombrio. Picos de montanhas e instantes de alegria e glória, assim como os recantos mais sórdidos, fazem parte da vida e precisamos experimentá-los. Mas ficar embaixo por muito tempo e por qualquer motivo pode nos prejudicar mais do que ajudar. Por isso é sempre bom ter um lastro interno, como o dos navios, que não deixam a embarcação virar, seja de um lado, seja de outro. É necessário ter um prumo nessa vida, um norte.
Um lastro se constrói com qualidades como fé e confiança, seja na vida, seja em nós, seja num poder divino. Não existem respostas absolutas para isso. Confiança significa se fiar totalmente, ter fé em alguma coisa que para nós é muito importante. E só podemos nos entregar abertamente e sem muita resistência se não nos amarguramos demais com as más experiências. Ou podemos até nos entristecer, mas só por um tempo, isto é, nos dias ou meses necessários para que a nossa psique possa se aprumar de novo. É o lastro que não nos deixa emborcar de vez e que nos vai conduzir ao equilíbrio perdido. O cinismo, a agressividade e o sarcasmo são sinais de que ficamos virados de lado em algum ponto. A fluidez, a alegria e a leveza, ao contrário, apontam que conseguimos voltar para a nossa estabilidade. Mas, como estamos a navegar no mar da consciência, nada é definitivo. Também o equilíbrio precisa ser reajustado constantemente em seu vai e vem.
A confiança na vida, e em nós, depende basicamente de nossas vivências da infância, do apoio que tivemos da família ou de adultos significativos. Mas, se elas podem condicionar nossas crenças, não as podem determinar. Enfim, você já está bem grandinho para escolher outras diretrizes mais positivas, se não as teve antes. Pode se superar. “A resiliência se define como a capacidade das pessoas, submetidas aos efeitos de uma adversidade, de a superar e, inclusive, de sair fortalecidas de uma situação desfavorável”, escreveu Boris Cyrulnik, judeu e órfão aos 6 anos, que perambulou por entidades assistenciais francesas até se tornar um médico de renome internacional, justamente um especialista em superação de traumas.
“Essa capacidade de resistência é posta à prova em situações de forte e prolongado estresse, por exemplo, diante da perda inesperada de um ente querido, de abuso físico ou psíquico, de abandono efetivo, de sofrimentos causados por catástrofes naturais ou pobreza.” Cyrulnik ultrapassou seus traumas infantis com a ajuda de um casal de vizinhos que o ensinou, ainda criança, a ter amor pela vida, e há décadas ajuda outras pessoas a fazer o mesmo. Ele mostra que é possível superar más lembranças de infância e voltar ao centro, ao equilíbrio, e pedir ajuda é um ato perfeitamente natural entre as pessoas que dependem umas das outras para sobreviver.
Para chegar a isso você já sabe: terapia e autoconhecimento ajudam muito, meditação e oração, práticas contemplativas como tai chi e ioga, encontros com a natureza, momentos de silêncio e solidão ou diálogos profundos com pessoas de mais sabedoria. Permita-me lhe dizer também que, nessas horas, acreditar em algo ajuda bastante. Para quem alimenta algum tipo de espiritualidade, pedir torna-se natural e uma expressão da própria fé.
VOCÊ PODE GOSTAR
– Saúde mental: É hora de cuidar de você
O xis da questão
Bom, até agora falamos do que pode nos ajudar na hora de fazer um pedido: como podemos pensá-lo em termos de uma boa troca, a importância de sentir honestidade e justeza ao fazê-lo, assim como o valor do corpo, da confiança interna e do equilíbrio. Daqui para a frente vamos nos referir ao que pode nos atrapalhar nesse momento. Ninguém pode dizer que é fácil, por exemplo, pedir dinheiro emprestado aos próprios pais, ou aos filhos. E não adianta termos todas as justificativas do mundo para isso (falta de trabalho, doença, despesas inesperadas). Vamos nos culpar e nos sentir miseráveis mesmo assim. Também não é simples pedir que um amigo guarde seus móveis na garagem porque você não pode pagar um depósito ou pedir uma chance ao parceiro que foi embora – e você ainda acredita que o relacionamento pode dar certo. Mas, muitas vezes, não é o outro que torna isso complicado. Ele talvez compreenda e aceite seu pedido. Quem dificulta é você. Então, para tratar desse assunto, vamos começar pela pergunta: por que pode ser tão doloroso pedir algo importante a alguém?
Existem algumas respostas para isso. A primeira delas é: porque ficamos expostos e vulneráveis. E temos horror disso. Ou melhor, o ego tem. Toda aquela construção presunçosa que mantemos com duro esforço de nos mostrarmos autossuficientes, brilhantes e inteiros pode ruir se isso for para nós motivo de vergonha, complexo de inferioridade, sensação de fracasso ou pânico diante da possibilidade de uma recusa. “Nos anestesiamos continuamente com divertimentos, busca pelo prazer, viagens só para não provar a imensa dor e vergonha de nos sentirmos vulneráveis, expostos, imperfeitos, insuficientes, inadequados, impotentes”, diz a pesquisadora americana Brené Brown em suas palestras. E é isso mesmo o que acontece. Mas se a vulnerabilidade é o berço desses sentimentos negativos ela também é terreno fértil para brotar o amor, a compaixão, e a alegria de saber que, nus e vulneráveis, somos todos iguais.
Porém, para muitos de nós, fazer um pedido traz tanto sofrimento que pode, na hora H, nos fazer chorar. Nos sentimos pequenos, inferiores, humilhados. E é essa justamente a visão distorcida da história. Por isso desconfie muito dos sentimentos negativos que podem assolar sua alma nessa hora. A sensação de humilhação, na verdade, pode nascer de nossa vaidade ou orgulho ferido. O sentimento de vergonha pode revelar a dureza de nosso autojulgamento e um perfeccionismo implacável. Já o medo, em geral, esconde um conjunto de expectativas negativas sem nenhum fundamento e até uma tentativa de autossabotagem. Então, ao perceber que está passando a perna em você mesmo, respire fundo. Tome um banho de mar ou de cachoeira (chuveiro também serve), caminhe por um parque e jogue fora esse peso inútil. Expire o medo e inspire confiança. Expire a vergonha e inspire a coragem. Expire a humilhação e inspire o amor-próprio. Pedir é ter confiança no outro, e uma instância natural da vida. Só isso. Hoje é você que pode, amanhã é o outro a quem você pediu, uma ciranda eterna. Então para que sofrer tanto? Relaxe… Fazer um pedido não é tão importante assim.
E aqui vou revelar um segredo, algo que realmente faz você tremer de medo nesses momentos. É um motivo inconsciente, e por isso pode passar batido. Cá entre nós, que ninguém nos ouça, mas a verdade é que boa parte de nós acredita que não somos merecedores daquilo que pedimos. E, preste atenção, se você, inconscientemente, não acreditar que merece o que pede, dificilmente vai obter aquilo. Se isso acontecer com você, se dê conta disso e procure saber as causas. Dê um tempo. Autorreflexão, coaching, terapia, leitura de livros, aconselhamento espiritual, neurolinguística, um elenco de técnicas e métodos pode ajudá-lo a encontrar o motivo. Antes de pedir, portanto, seria melhor você se aprofundar nessa questão, e respondê-la com sinceridade.
Sem medo da conexão
Vamos voltar à noiva do começo da história. Tudo o que ela fazia era entrar em conexão profunda, inclusive com um desconhecido. Esse é o nosso maior temor.
“Todos os dias escolhemos inúmeras vezes se vamos pedir ou nos afastar uns dos outros. Pensamos se seria muito abuso solicitar ao vizinho que dê comida ao gato. Consideramos a decisão de dar as costas a um companheiro, de apagar a luz de um relacionamento, em vez de pedir que ele diga qual é o problema”, escreveu Amanda Palmer em seu livro.
“Fazer um pedido de ajuda requer autenticidade e vulnerabilidade. Quem pede sem medo aprende a dizer duas coisas, com ou sem palavras: mereço pedir e não tem problema se você disser não.”
Simples e verdadeiro. E uma grande oportunidade para nos tornarmos mais humildes e humanos, duas palavras que têm a mesma raiz: humus, terra. Pedir nos coloca mais próximos da terra, do outro e de nós mesmos. Não tenha medo. Peça.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login