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Iniciativas culinárias resgatam preparos ancestrais de alimentos
(FOTO: VICTOR COLLOR • @VICTORCOLLOR) Depois de saber que muitos pescadores não tinham luz elétrica para manter frescos seus pescados, Rodolfo Vilar começou a investigar métodos de conservação e criou o projeto A.MAR
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Foi durante os dias que passava na praia do Bonete, em Ilhabela, que o administrador paulistano Rodolfo Vilar percebeu que os mo­radores da pequena comunidade viviam uma realidade muito diferente da sua. Especialmente em relação à conservação dos alimentos.

Ele cresceu entre a capital paulista e alguns finais de se­mana em que fugia para o litoral do estado para pescar com os amigos. Um hábito adqui­rido desde a infância.

Na maioria das vezes, preferia se hospedar com os companheiros de pesca na casa dos locais. Ali, a energia elé­trica é um recurso escasso.

Desde 2017, um projeto de compensação ambiental ajudou a instalar placas solares de modo a fornecer energia para cerca de 250 famílias que vivem na região.

Antes, porém, as noites escuras, iluminadas apenas por lampiões, eram uma irremediável lembrança de que havia – e há, ainda hoje – pessoas que vivem sem luz elé­trica, sem televisão e mesmo sem geladeira para conservar seus alimentos.

Na confluência de culturas, surgem as soluções

Foi esse ponto, especificamente, que gerou uma grande consternação em Vilar. Como era possível uma vila de pescadores, com tanto acesso a peixes frescos, ter que contar com o alimento diário sem poder pensar muito se iria ou não tê-lo no prato nos dias seguintes?

“Eu via muito desperdício porque as pessoas não tinham como conservar aqueles peixes”, conta. Ele começou então a pensar em como ajudar a comunidade a desenvolver técnicas de conservação para garantir alimentos por mais tempo.

“Era algo que pudesse dar a eles alguma ideia de autonomia alimentar. Civi­lizações inteiras se desenvolveram a partir dessas técnicas e pensei que poderia ajudá­-los de alguma forma semelhante”, explica.

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Uma forma ancestral de conservar a comida

A ideia de focar na defumação era a mais fá­cil: por muitos anos, todas as casas da região tiveram fogão a lenha. Isso ajudou a fazer com que a prática de utilizar a própria fuma­ça como uma forma de evitar contaminações de microrganismos fosse quase automática.

Depois dos momentos que passava com os moradores do Bonete, ele ganhava alguns peixes defumados que levava para sua casa, em São Paulo, e oferecia para os amigos, em jantares e reuniões.

“As pessoas sempre gos­tavam muito e queriam mais. Até que um dia, para saber qual era qual, começamos a colar uns esparadrapos nos peixes, na parte detrás da escama”, conta.

Escreviam o nome do pescador, o local da pesca, a lenha utilizada na defumação (entre vara de facho, caxeta, Guapuruvu) e comparavam os sabores.

Da informalidade a uma iniciativa que gera renda

O que começou como uma iniciativa in­formal de ajuda aos pescadores, ainda em 2004, foi se desenvolvendo até se tornar um projeto maior, hoje batizado de A.MAR (@projetoa.mar).

Constituído oficialmen­te em 2016 por Vilar e seus sócios, o dire­tor de e-commerce Ciro dos Reis e o pes­cador Alex de Jesus, conta até mesmo com laboratórios para melhorar os processos de conservação de pescados e outros alimentos.

O foco é aprender com técnicas usadas por antigas civilizações – do Império Romano ao Japão ancestral, passando pelos países nórdicos – para preservar e tirar melhor proveito dos pei­xes.

Entre os produtos desenvolvidos, há salsichas de polvo, linguiça de tainha com fécula de mandioca e uma copa de atum – tudo feito à base de pesca de manejo sus­tentável com animais locais.

A cadeia de valor sustentável da pesca artesanal

Comida ancestral Nessa (re)descoberta de técnicas ancestrais de preservação dos alimentos, também há a chance de resgatar saberes há muito esquecidos, seja pelo tempo, pela colonização ou pela globalização

Eles compram o que os caiçaras pescam e aplicam as técnicas de preservação aos peixes e frutos do mar. “O projeto não é responsável por resolver a vida de ne­nhuma família, de nenhum pescador. Mas, com certeza, há uma contribuição de visi­bilidade da importância da pesca artesa­nal e ajudar a complementar a renda”, ele diz.

Também é uma forma de pesquisar e incentivar práticas muito antigas de salga (como no caso do bacalhau, em Portugal), de fermentações (como os caldos de pei­xe nos países asiáticos) e de charcutaria (como a ficaccia, um tipo de salame de atum com porco e pistache da Sicília e ilhas mais pobres do Mediterrâneo).

Vilar diz que o projeto não faz nada de au­toral – ainda que se permita um pouco de criatividade, como no caso de combinações de ingredientes inusitadas algumas vezes.

“Tudo o que a gente faz é apoiado em livros, bibliografia e resgate do que já era feito an­tigamente, tentando reproduzir da forma mais tradicional. A gente organizou o estu­do de técnicas antigas para catalogá-las e
aplicá-las nos produtos”, conta.

O que fazem só é vendido em pequenas feiras artesanais e de apoio aos pequenos produtores, sem grandes pretensões comerciais.

“Não há nada de essencialmente novo no que faze­mos, estamos apenas a olhar para o passa­do para mostrar a amplitude que o mundo da pesca artesanal pode atingir”, diz.

O retorno às origens dos alimentos

Olhar para o passado tem sido uma boa maneira de moldar como – e o que – va­lorizamos no panorama alimentar hoje.

“Técnicas de fermentação milenares, por exemplo, voltaram até aos cardápios dos melhores restaurantes do mundo”, explica Jorge Bretón, chef de cozinha e professor do Basque Culinary Center, na Espanha.

“Hoje, usamos técnicas como o levain [fer­mentação natural do pão] em nossas casas como se fosse algo recém-descoberto, sem lembrar que as pessoas já comem dessa forma há séculos”, aponta.

Para ele, vive­mos um momento de tentar entender de onde viemos em termos alimentares, algo que uma nova obsessão com a origem dos alimentos só fez aumentar.

Como exemplo deste novo momento, Bre­tón aponta o uso do garum em grandes restaurantes. Uma iguaria nos tempos an­tigos, esse molho de peixe fermentado era originalmente feito em toda a bacia do Me­diterrâneo.

A tradição remonta a milhares de anos, quando era considerado um dos ingredientes mais valiosos para fenícios, gregos e (principalmente) romanos. Trata-se de um condimento de molho de mesa tão ampla­mente utilizado como ketchup ou molho de soja hoje em dia.

O garum era feito apenas com pequenos peixes eviscerados, como sardinhas e cavalas, salmoura e tem­po para fermentar (já que o processo podia levar quase um ano!).

Ancestralidade também é atual

Comida ancestral Além do projeto A.MAR, restaurantes conceituados, como Noma, na Dinamarca, ou Central e MIL, no Peru, são alguns dos exemplos que nos mostram o quanto de inovação há nos saberes seculares

Hoje, restaurantes como o Noma, na Di­namarca (considerado um dos melhores do mundo), usam a técnica em seus pra­tos. Porém, encurtando tempos e buscando novas maneiras de fazê-lo, como na ado­ção do koji, por exemplo, um tipo de fun­go que agiliza o processo.

Técnicas mile­nares para fazer massas, molhos e outras receitas também têm sido mais adotadas, do kimchi coreano aos moles mexicanos – criados por civilizações pré-hispânicas.

“Por muito tempo, a gastronomia esteve com os olhos voltados para o futuro, em tentar inovar em técnicas, processos e in­gredientes. Hoje, estudamos a inovação que o passado nos relegou, aprendendo com ele a ter uma nova relação com os ali­mentos“, afirma Bretón.

Descolonizando as raízes culinárias

Uma visão mais descolonizadora da comi­da também tem ajudado nesse processo de resgate. À medida que cozinheiros de muitos países decidem estudar melhor sua história, suas raízes, conseguem tra­zer de volta à mesa ingredientes e méto­dos que os processos de colonização e, mais recentemente, de globalização, re­legaram ao ostracismo.

No Peru, os chefs Virgilio Martínez e Pía León, casal à frente dos restaurantes Central e o MIL, têm mostrado o quanto de inovação há no conhecimento secular.

Nos últimos anos, eles passaram a organizar expedi­ções multidisciplinares para percorrer o interior do país. Viajam da floresta amazônica aos altiplanos para conhecer mais sobre a própria história culinária e revelar o que ficou encoberto pelo tempo.

Embora já utilizasse os ingredientes da região, foi nessas incursões com grupos de arqueólogos e antropólogos que des­cobriram alimentos nativos de difícil acesso e que acabavam restritos às pequenas comunidades que vivem na região.

O resgate de conhecimentos da cultura alimentar

Hoje, mantêm na zona de Cuzco um centro de in­vestigação de alimentos e técnicas andinas, chamado Mater Iniciativa, que resgata conhecimentos históricos.

“O projeto é o foco do trabalho que fazemos nos restau­rantes. Ele prioriza a busca por ingredientes, técnicas e conhecimentos sobre nossa pró­pria cultura alimentar”, diz Martínez.

O centro foi erguido no complexo arqueológico inca a 3.500 metros. Ali, povos andinos pude­ram se aproveitar dos diferentes microcli­mas para suas experimentações agrícolas no decorrer dos séculos. O local serve de pes­quisa para técnicas passadas de geração para geração entre os povos das monta­nhas.

É o caso dos cozimentos feitos nos huatia, um tipo de forno feito de pedras. Nele prepara-se os tubérculos e raízes com as cinzas e o calor da brasa que aquece o solo.

Ou do uso de dezenas de es­pécies de batatas desconhecidas do nosso paladar atual por terem sido esquecidas com o tempo. “Queremos ir mais a fundo em apresentar nosso território, a inter­pretação que fazemos da paisagem que temos ao redor, de sua gente e sua histó­ria”, explica o chef.

“A forma de inovarmos é contar sobre o nosso legado, sobre nossos ingredientes que estão aí para serem res­gatados”, ele afirma. Uma espécie de olhar ancestral, mas agora voltado ao futuro.

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RAFAEL TONON é jornalista e escritor e acredita que a ancestralidade é a maior inovação da gastronomia atualmente. @tononrafa


Conteúdo publicado originalmente na Edição 244 da Vida Simples

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