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Quando é hora de recomeçar?
Gilberto Olimpio
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Neste artigo:

Há alguns anos, meus cabelos eram muito longos e cortei-os bem curtinhos. Fiquei o tempo todo de costas para o espelho. A cabeleireira prendeu-os e, com um único golpe, reduziu tudo a menos da metade. Gostei. Durante algum tempo, senti falta do volume ao ensaboar a cabeça, espantei-me com meu novo reflexo e tive de explicar mil vezes, para os que estranhavam, por que havia feito aquilo: “deixei crescer, para poder cortar”.

Desde então, e nunca mais com o mesmo impacto, é claro, as tesouradas pontuam meus novos começos na vida – voltei a estudar, o amor acabou, fui demitida, me demiti, mudei de casa, casei. Simbolicamente, a “tesoura do desejo” subtrai pontas que perderam o sentido. Na prática, a possibilidade de mudar alarga os horizontes e ganho perspectiva: “posso recomeçar, logo estou bem viva”.

Aqui entre nós, já recomecei tantas vezes o texto que você lê agora que, aplicando literalmente essa lógica, eu deveria estar careca. Foi difícil, porque recomeçar é uma batalha pessoal. Quando buscava inspiração, achei no Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa: “uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e não lhes serve; outros, ainda, se perdem”. Para desembaraçar os parágrafos que se desenrolam a seguir, me perdi bastante por aí.

Recomeçar

Recomeçar, verbo transitivo direto, significa começar de novo, retomar após interrupção. Desejamos que nossos recomeços sejam substantivos, que nos ajudem a identificar o significado perdido ou ainda não encontrado. E que ajudem também a dar sentido ao que já temos.

É bom saber que, além dos recomeços do calendário (a virada do ano, a volta às aulas), temos a chance de reinventar a própria história e encontrar satisfação fazendo um movimento em direção ao novo, em pleno voo. Aquela sensação de que algo precisa mudar, mas nada é feito enquanto somos assombrados pelo medo.

Chegam a mim cada vez mais relatos de gente que, com coragem, resolve mudar, fazer algo que nunca fez concretamente. E isso é bem bonito. “Voltei para a faculdade e estou estudando gastronomia”, “entrei no curso de moda e vou começar a desenhar”, “pedi demissão e vou para casa, pensar no que realmente quero fazer”.

Mudança de rota

A paulistana Maria Lucia Lima Soares foi médica radiologista em São Paulo por mais de 20 anos. Recebia um ótimo salário e trabalhava de 12 a 14 horas por dia. Aos poucos, começou a cortar os fios que a ligavam diretamente ao exercício da medicina e à vida que ela adjetivava de “materialista demais”. Foi procurando formas alternativas de ajudar os outros que deu um jeito de inserir em sua rotina a acupuntura e a homeopatia.

“Me diziam que eu estava enlouquecendo, mas aquilo tudo não tinha mais significado, me aprisionava e eu precisava fazer outra coisa.” Em 2006, Malu alugou seu apartamento em São Paulo, deixou o emprego em um grande hospital e mudou-se para Maceió, onde trabalhou como acupunturista voluntária.

Agora dá aulas na Universidade Federal de Alagoas e hospeda em sua casa, numa vila de pescadores, estudantes estrangeiros que trabalham também com voluntariado. Aos 58 anos, continua investindo no processo de desprendimento. “Tenho cada vez menos medo de mudar.”

O caminho pode não ser suave…

Minha amiga Claudia Grechi Steiner, jornalista, há mais de dez anos casou, mudou para a Suíça, onde teve uma filha, aprendeu alemão e deixou sua carreira suspensa. Escrever, por um bom tempo, foi um projeto adormecido. Há pouco mais de um ano, “começou a ser” escritora com os recursos que possuía no momento: vontade, talento e computador.

Publica em temporadas o livro Só o Pó, no Facebook, e tem um romance, O Caderno de Ana, entre os mais vendidos na loja brasileira da Amazon. Fácil? Não. Dinheiro praticamente não há, ainda. O que vem adiante? Não sei. Mas alguma coisa está acontecendo. E Claudia está lá no meio.

O projeto online Continue curioso, que hospeda filmes sobre recomeços profissionais, acaba de lançar a segunda temporada de vídeos. Cada um perfila uma pessoa ou grupo que está tentando fazer algo, promovendo mudanças pessoais e coletivas, e com isso está contente. Há a publicitária que era infeliz na agência, voltou para a escola e virou cozinheira, a família que foi trabalhar na roça e hoje tem um sítio de orgânicos onde produz, entre outras coisas, morangos suculentos. Em algum momento de suas vidas, todos deram ouvidos a uma voz interior que os fez comparecer ao guichê do recomeço.

Respeite seu processo para recomeçar

Ao recalcular a rota que nos leva ao novo, porém, as mudanças nunca são imediatas, muito menos perfeitas. Coisas dão errado o tempo todo, há desistências e várias perdas e, sobretudo, há a batalha que cada um tem de enfrentar para ser fiel a si mesmo. Muitos escapam dessa briga, mas tenho a impressão de que os que se movem não estão fugindo: acreditam que o recomeço é rico e mais profundo do que um simples corte de cabelo. Principalmente quando conseguimos avançar em sua direção com alguma abertura para dar sentido à vida quando o amor acaba ou preencher o buraco cavado por um trabalho que, com o perdão de qualquer trocadilho, não nos representa.

A repórter, escritora e documentarista Eliane Brum pediu demissão e começou uma vida sem carteira assinada, nova para ela. No texto “Desconhece-te a ti mesmo”, publicado em 2010 e reeditado em seu livro A Menina Quebrada, , ela diz: “Naquele momento, quando escrevi sobre a minha escolha, disse que meu desejo era me reinventar. Hoje, passados quase cinco meses dessa mudança, descubro que para me reinventar é preciso, antes, me desconhecer (…). É preciso ser capaz de olhar para nós mesmos com estranhamento para que possamos enxergar possibilidades que um olhar viciado tornaria invisíveis. Esse é o processo de se desconhecer como uma forma mais profunda de se conhecer. Para novamente se desconhe-cer, e assim por diante. Exige muita coragem. Porque dá um medo danado.”

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…mas é bem interessante

Quando visitei minha própria coleção de recomeços, percebi que às vezes tenho a tendência mercurial de encerrar na gaveta questões com as quais não quero lidar e subitamente despejá-las no lixo. Sinto um baita alívio e torno a ocupar o espaço liberado com novidade, ok, mas de um jeito ou de outro a conta do que foi ignorado aparece.

É a ilusão do controle. A primeira lição sobre recomeços que aprendi ao construir este texto é: dizer adeus ao que deixaremos para trás de um jeito profundo é um cuidado fundamental e ajuda a recomeçar.

Eu não tinha tanta clareza do significado dessa espécie de luto até conversar com o jornalista inglês David Baker. Ele é um dos fundadores da revista Wired inglesa, onde trabalhou, em Londres, até 2011. Agora dá aulas na The School of Life, criada pelo filósofo suíço Alain de Botton. A instituição, também inglesa, dedica-se a grandes questões como “relacionamentos podem durar a vida inteira?” ou “como entender melhor o mundo?”, usando para isso filosofia, literatura, psicologia e arte. 

David nos ajuda a refletir sobre uma vida mais autêntica. “O desejo de começar de novo é muito bonito, mas, a rigor, recomeçar do zero é impossível”, disse ele. “Estamos, aos 20, 25, 35 ou 50 anos, no meio do projeto de vida e seria uma pena jogar fora o que trazemos. O melhor é olhar para dentro e desfazer-se aos poucos e com cuidado daquilo que não precisamos, abrindo espaço para o novo de um jeito mais tranquilo e usando as experiências a nosso favor”, acredita.

Ainda que o processo não seja exato nem instantâneo, David destaca três passos para organizar a movimentação. 

Caminhos para recomeçar

O primeiro é identificar e dizer adeus para objetos, hábitos, atividades e relações que não fazem mais sentido. Assim, arejada, a vida abre espaço para o novo – sabe aquela tarde chuvosa de domingo em que você para diante do armário, põe tudo abaixo e limpa, tira o que não serve, arruma? É por aí.

“Para mim, a criatividade só flui quando há espaço em minha vida, interno e físico. Para conseguir esse espaço, é importante cumprir um ritual semelhante ao luto, fechar ciclos, assimilar o fim, a perda ou a separação do que já não nos serve. A seu tempo, uma saudade tranquila tomará o lugar da dor. É um sentimento muito suave e confortante. Muitas vezes as pessoas simplesmente se esquecem dele.”

Feita a limpeza dentro da gente, e também em casa, nas gavetas ou onde for necessário, David sugere identificar e atribuir valor ao que é importante. É um exercício interessante de autoconhecimento, perguntar assim mesmo: o que faz você se sentir realmente vivo? A ideia é observar valores, hábitos e atividades que nos definem, como talvez para algumas pessoas seja ler, fazer ioga, brincar com o filho.

A sugestão é listar as sete experiências que façam você se sentir vivo. Depois, durante cerca de dez minutos, pensar em cada um dos tópicos e desenhar ao lado objetos, imagens ou situações que os representem. Em seguida, mostrar os desenhos para quem estiver ao lado e buscar palavras para descrevê-los e explicá-los. Essa reflexão ajuda a enxergar o que é importante na vida. A partir daí, é construir a nova rotina.

“A coragem do recomeço é proveniente do autoconhecimento. Não é uma coragem louca e inconsequente. Nesse sentido, recomeçar, sendo honesto consigo, é menos desgastante do que ficar o tempo todo tentando ser quem esperam que a gente seja.”

A vida é de cada um

Ao percorrer histórias reais e fictícias de recomeços, acabei assistindo outra vez a Mary & Max, uma animação para adultos (mesmo). O longa conta a história da menina Mary Daisy Dinkle, australiana de Melbourne, e do americano Max Jerry Horovitz, de 44 anos, que vive sozinho em Nova York. Um dia, Mary quis saber qual a origem dos bebês americanos.

Seu avô lhe contou que na Austrália as crianças surgem no fundo do copo de cerveja. Será que nos Estados Unidos elas aparecem na lata de refrigerante? Então Mary sorteia um nome na lista telefônica de Nova York, e escreve para Max a pergunta dos bebês. No envelope, enfia uma barra de chocolate e a frase: “Espero que aceite ser meu amigo”. O destinatário é o metódico Max, que tenta responder à pergunta de Mary. A partir de então, os dois trocam muitas cartas. E os 20 anos de correspondência entre eles pavimentam de sentido a calçada de suas existências, cheia de rachaduras e emendas, como é a minha e a sua.

Em uma sociedade habituada a valorizar ganhos materiais, boniteza e felicidade a qualquer custo, Mary e Max poderiam, em análise ligeira, ser considerados perdedores. Se vivessem em nosso tempo, talvez até fingissem no Facebook uma vida diferente, ideal, aceita. Mas não. Mary e Max tentam viver a própria verdade, que consiste em contornar os nãos que a vida lhes oferece em abundância, fazer perguntas sinceras, gostar de chocolate, leite condensado, barulho de chuva, e cheiro de bicho de estimação molhado.

Na aventura empreendida por todos nós entre o nascer e o morrer, que é a vida, temos a chance de ser de verdade, como Mary e Max. Também podemos perseguir o pacote convencional casa, carro, emprego fixo e dinheiro, supermãe e superpai, fazendo um jogo que muitas vezes nem nos pertence, mas parece certo.

Ainda que não tenhamos controle absoluto, é interessante notar que, em parte, somos livres para voltar atrás, recomeçar com o que temos, dar um passo, trabalhar com outra coisa e aceitar que, muitas vezes, simplesmente não sabemos. Isso tudo é possível desde que estejamos dispostos a não nos esquivar do que nos define.

Enfim, o tempo todo somos convidados a prestar mais e mais atenção em nossa vida. E a (re)vivê-la de verdade, logo.

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