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Feridas e machucados: como curar nossas dores emocionais?
Matteo Di Iorio
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Neste artigo:

Do outro lado da linha telefônica, a voz feminina com um leve sotaque texano me conta uma história. Parte desse relato eu já conhecia, assim como outras milhões de pessoas do mundo inteiro que assistiram aos dois vídeos das palestras de Brené Brown sobre vulnerabilidade divulgadas pelo site do TED na internet.

Com bom humor, Brené me fala de uma pesquisadora americana, ela própria, acostumada a medir e classificar reações humanas para obter estatísticas e tendências, que de repente perde sua capacidade de avaliação e mesura ao se defrontar com um assunto que a faria mudar radicalmente de vida.

O tema de sua pesquisa era a vulnerabilidade. Ao se aprofundar nesse assunto, ela tinha dúzias de perguntas sem respostas. Por que algumas pessoas, ao se sentirem vulneráveis, expostas e até mesmo feridas, tinham a extraordinária capacidade de enfrentar a situação com aceitação e dignidade?

Qual a qualidade inquebrantável que elas tinham em comum que não as deixava ficar arrasadas pela descoberta pública de seus defeitos e limites? Por que não tinham medo de perder cargos, casamentos e árduas conquistas ao se mostrar como eram, sem tantas máscaras e mentiras?

Por que eram vulneráveis, abertas, sensíveis e, ao mesmo tempo, tão resistentes e impermeáveis ao que atingiria profundamente a maior parte das pessoas? Eu, pelo menos, gostaria muito de saber essas respostas.

Insegurança

Bem cedo passei por vexames grandiosos. Por exemplo, diante de outras crianças da minha turma que descobriram que eu, já grandinha, ainda não tinha abandonado o hábito de chupar o dedo. Também passei pela vergonha pública durante minha primeira sofrida e sofrível apresentação de piano, quando minha mãe se convenceu definitivamente de que eu jamais seria a concertista que ela sonhava.

E, com o tempo, aprendi a usar escudos para encobrir minhas notáveis imperfeições, técnica que a maioria de nós aprimora durante a vida. Por exemplo, se alguém percebia que meu inglês não é lá essas coisas, eu me apressava em dizer que meu francês era bem melhor, pois fiz pós-graduação na Sorbonne, em Paris. Se não era boa no vôlei, dizia que poderia ser instrutora de tai chi. Mostrar pontos fortes para rebater meus pontos fracos tornou-se uma ótima saída. 

Desfilaria aqui por horas meus piores vexames e vergonhas, assim como meus escudos protetores correspondentes, mas nem por um momento poderia dizer que tinha passado por algo tão terrível como o que Brené me contou, tranquila e numa boa, ao telefone.

Fragilidade

Se eu tinha ficado arrasada com meus vexames em petit comité, o que ela poderia ter experimentado ao ser ridicularizada num programa de entrevistas em cadeia nacional, conduzido por jornalistas ávidos em acabar com ela depois do imenso sucesso de suas palestras na internet?

Ao ouvirem a pesquisadora falar sobre a autenticidade do coração vulnerável, seus entrevistadores passaram a sugerir que ela usasse mais seu tempo em pesquisas e menos em aplicar Botox ou retocar a raiz do cabelo. Como se, para ser verdadeira e autêntica, fosse preciso fugir de cremes e tinturas como o diabo foge da cruz. 

Pergunto a essa herdeira de cinco gerações de caubóis o que faz alguém não se abater por uma situação parecida. O que pode converter a fragilidade de ser exposta e ferida numa descomunal força interior, às vezes silenciosa, mas presente e dominante, como ela própria demonstrou? Ela toma fôlego, como que para arrancar a verdade da parte mais profunda do coração.

“Meus valores”, diz ela, economicamente. Brené acredita nas conclusões a que chegou em seu trabalho. Também acha que suas descobertas podem ajudar muita gente que se sente fragilizada, deprimida, impotente e estagnada num lamaçal de sentimentos negativos. Portanto, não se importa que tentem ridicularizá-la ou diminuí-la.

A pesquisadora e autora do livro A Arte da Imperfeição (editora Novo Conceito) pensa que isso é bem menos importante que ser solidária e dar uma mão a quem precisa de sua ajuda. Seu coração é genuinamente aberto, corajoso e compassivo. Então, mesmo se tiver que pagar esse alto preço, ela paga. Não é mulher de dizer “eu passo”. 

Risco e confiança

O que caracteriza as pessoas que têm a coragem de baixar a guarda e mostrar suas fragilidades ou defeitos sem as tradicionais máscaras? “Elas se sentem confortáveis na própria pele e lidam relativamente bem com o risco”, diz Brené. Isto é, navegam por um campo de autoconfiança em que não têm tanto medo de perder ou fracassar.

E, quando fracassam e perdem, sabem que isso também faz parte do jogo, e que ninguém precisa morrer por causa disso. Ou seja, são menos controladoras e onipotentes. Por sua natureza, ou por uma educação que as fez sentir valorizadas e estimuladas quando crianças, elas enfrentam com mais serenidade e aceitação o que se apresenta.

“Ser vulnerável é ir ao encontro de ser quem você é, na sua totalidade, com seus limites e imperfeições. Isso nos dá uma incrível força”, diz Brené Brown. Ela me diz que ocorre uma espécie de paradoxo: quanto mais aberta e exposta, mais a pessoa se torna forte e corajosa. “É o oposto do que normalmente se pensa.” Essas pessoas também têm um senso de pertencimento razoável, isto é, acreditam que podem ser amadas e acolhidas do jeito que são. “Elas experimentam ou já experimentaram o amor e a aceitação de uma ou mais pessoas. São mais seguras, e não agradadoras compulsivas”, diz a pesquisadora. 

Ser frágil

Então o que significaria ser frágil? “É caminhar na direção contrária a isso, tentar esconder nossas imperfeições e incapacidades debaixo de uma grossa camada de proteção. Enfim, acreditamos que não podemos ser aceitos do jeito que realmente somos”, responde Brené.

Quando somos pegos em flagrante em nossa própria mentira, nos despedaçamos. A vulnerabilidade nos torna fortes, autênticos e verdadeiros. O medo e a vergonha nos estilhaçam por dentro quando uma verdade a nosso respeito é revelada.

O coração vulnerável é o nascedouro de ricas experiências criativas, inovações e mudanças, porque está aberto para o que der e vier. Em sua aceitação da realidade tal como ela se apresenta, ele é mais humilde e brando, mais alegre. E verdadeiro em sua dignidade. 

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Ser quem você é

E se a gente não for tão autoconfiante assim? O mestre tibetano Chögyam Trungpa diz que é possível aprender a ser vulnerável e corajoso, a ter o que ele chama de “coração de tristeza”. Esse é tão sensível que é capaz de sentir um mosquito pousar. “Descobrir o destemor é o resultado de trabalharmos a delicadeza do coração humano”, escreveu em seu livro Shambhala, a Trilha Sagrada do Guerreiro (editora Cultrix). Basta ser mais autêntico. 

É o que ensinam as tradições guerreiras de várias culturas, dos cavaleiros medievais aos samurais do Japão: um bravo é simplesmente aquele que sabe quem ele é. Essa pessoa não precisa de tantos escudos e proteções porque já encarou a si mesma sem fugir e se olhou verdadeiramente no espelho. E assumiu suas imperfeições, incapacidades, sombras e limites.

Isso me faz lembrar os nomes que são dados aos chefes indígenas nas tradições originais do norte dos EUA. Um guerreiro de coragem pode se chamar Cavalo Manco, Alce Negro ou Touro Sentado, porque são características que se conectam com sua história de vida ou suas qualidades pessoais.

Ninguém recebe o nome de Imperador das Águias Emplumadas ou Rei dos Búfalos Dourados. Um guerreiro não é nunca mais ou menos, ele é o que é. Que nome, considerando sua vida e características, você daria a si mesmo?

Sushi gigante

Trungpa chamava esse invólucro protetor em que nos envolvemos para nos defender de “casulo”. Para o mestre tibetano, o casulo nos separa da vida real e dos relacionamentos verdadeiros. Dele, só conseguimos vislumbrar a vida entre as frestas desse lugar escuro, úmido e malcheiroso. Um espaço que não recebe oxigênio e luz, que nunca abre suas janelas e portas, torna-se infecto. O problema, para Trungpa, é que corremos o risco de nos viciar nessa penumbra de ar rarefeito e fétido que um dia vai acabar por nos asfixiar. Com o tempo, estaremos imobilizados dentro dele, e enterrados vivos sem perceber. 

Assisti uma vez à encenação de esquetes teatrais montados por atores e diretores de uma comunidade ligada ao grupo Shambhala de Nova York. O casulo imaginado por Chögyam Trungpa era mostrado como um sushi gigante com um ator dentro dele. Esse sushi de pano fugia pelo palco de enormes hashis (palitinhos) manipulados por outro ator.

A ideia era essa: os hashis da realidade procuravam a todo momento a ponta da gaze do sushi para desenrolá-lo e libertar seu pobre ocupante medroso. Mas rapidamente ele pegava a ponta para se enrolar novamente, e continuar a ver a realidade pelas poucas frestas do seu invólucro fechadinho. Todos nós somos, mais ou menos, como esse sushi gigante. 

Atenção plena

Para Trungpa, a meditação era uma forma de entrar em contato com nosso coração sensível e abrir as portas e janelas do casulo. Ela também nos ajudaria a criar mais espaço interno e a não estar tão coladinhos nas máscaras que queremos mostrar para os outros, a ponto de pensar que somos apenas elas próprias. Não somos.

A meditação vai nos ajudar a nos descolar da persona, aquele “eu” previsível e amedrontado que pensamos ser. Criamos mais espaço, não precisamos agir tão reativamente, e descobrimos que somos mais que aquilo que pensamos ser. Relaxamos. 

Diz o mestre tibetano que, em essência, somos livres como um céu aberto. Não precisamos de tantos escudos, máscaras, casulos, caixas, muralhas que o ego usa para se defender. Se não conseguimos dispensar essa parafernália a todo momento, podemos experimentar fazer isso de vez em quando.

Respirar, oxigenar, abrir espaços onde o inesperado pode se manifestar com tranquilidade. Com o tempo, isso se tornará mais comum. Aprenderemos a estar dentro de um terno menos apertadinho e asfixiante, nos sentiremos mais relaxados e confortáveis no próprio corpo. Também mais vivos, despertos, dispostos. E felizes.

Imenso alívio

“O cair das máscaras faz parte do processo delusório da vida, do nosso amadurecimento. Caem as defesas, nossos papéis múltiplos e previsíveis são colocados em cheque, estruturas rígidas quebram em frangalhos. Mas isso tudo não é uma perda. Bem ao contrário. Isso é uma grande libertação”, diz a instrutora e terapeuta Dulce Magalhães, outra daquelas mulheres acostumadas a beber da própria autenticidade.

Um alívio. Cai de maduro um imenso peso que carregamos à custa de muito sacrifício. “Se num primeiro momento experimentamos esse arrebentar de amarras como dor, depois de um tempo vamos perceber que a quebra era necessária. Pode levar um período para nos acostumarmos e nos reerguermos diante da nova realidade. Mas depois vamos ver como foi bom nos soltarmos”, ela diz.

Ela dá um belo exemplo. Quando quebramos o pé e usamos gesso, ao colocá-lo de novo no chão, ele vai doer muito. Estaremos supersensíveis, teremos de reaprender a andar, a fazer novos movimentos, até o pé se fortalecer e a prática diária nos colocar firmes no chão mais uma vez. Depois disso, quem vai precisar do gesso? “É como uma troca de casca. Todo ser que cresce precisa de uma nova estrutura. O molusco abandona a concha se ela não serve mais. A consciência, quando se desenvolve, quando se amplia e se expande, também precisa de uma nova casa.”

Processos

Para Dulce, a vida tem uma inteligência própria que nos força a abandonar o antigo a fim de renascermos para outra realidade. “A existência vai apertar o cerco até a gente soltar o que tem de soltar”, diz, convicta. E quando saberemos que chegou o momento de ceder e nos entregarmos para o desconhecido? “Quando deixamos para trás o medo do que vai acontecer e nos atiramos confiantes num campo de novas possibilidades. Aí as coisas acontecem como têm de acontecer”, afirma. “Se a natureza nos atira nessa nova condição, também dá recursos para sobrevivermos a ela”. 

Dulce explica como se dá esse processo: “Descobrimos talentos, capacidades antes impensáveis. Também conheceremos uma nova rede de amigos, pessoas com quem se pode contar nessa fase de vida, já que muitos dos antigos camaradas não se encaixaram nos atuais padrões. Por último, começamos a saborear outra maneira de administrar essa existência nascente, aprendemos a fazer melhores opções ou a experimentar outros caminhos”.

É bem provável que ainda precisemos ocasionalmente da estrutura do ego e de suas defesas para nos relacionarmos. Mas não estaremos tão dependentes dela, não seremos tão reativos. Para usar os exemplos do começo do texto, poderei dizer com mais tranquilidade e segurança que não sei falar muito bem inglês. Admitir sem sofrimento ou culpa que nunca serei uma concertista de piano. Ou, como Brené fez, sustentar ataques pessoais com serena integridade. Está bom demais assim.

Ferida sagrada

E que fazer com a dor excruciante sentida no processo de desmoronamento? Ela vai ficar ali, para sempre. E vai se tornar o que alguns terapeutas chamam de “ferida sagrada”. A partir dela, poderemos nos tornar solidários com quem passa pela mesma dor. Mais que isso: os mitos gregos nos ensinam que também vamos adquirir o potencial de curar quem prova o mesmo sofrimento que experimentamos.

“Quíron, o centauro que ensinou Esculápio, o pai da medicina, a trabalhar com ervas e poções, tinha uma ferida que nunca curava. É engraçado: o grande mestre das ervas medicinais, ele próprio, tinha um corte que não sarava”, conta a psicanalista junguiana Martha Gouveia da Cruz. “Mas era exatamente essa ferida que dava a ele o dom da cura. Quíron é o que chamamos de ‘um curador ferido’. A partir de sua dor, podia compreender e curar a dos outros”, diz ela. 

O sofrimento faz parte

“Quando tudo se desintegra, somos submetidos a uma espécie de teste, e também a certo processo de cura. Achamos que o sentido está em passar no teste e superar o problema, mas a verdade é que muitas situações não têm solução definitiva. Elas se compõem e se desmoronam. E mais uma vez se compõem e se desmoronam.

É simplesmente assim que funciona. O processo de cura ocorre ao existir espaço para que tudo aconteça: espaço para o pesar, espaço para o alívio; para a angústia, para a alegria”, escreveu a monja budista americana Pema Chödron no livro Quando Tudo se Desfaz – Orientações Para Tempos Difíceis (editora Gryfus).

A dor da ferida sempre estará lá, assim como as outras dores que virão. Não precisaremos tanto nos proteger, porque já teremos a sabedoria de que não podemos nos esconder do sofrimento causado pela vida. Ele vai vir, de um jeito ou de outro. Mas, com o coração mais vulnerável e exposto, com o corpo mais relaxado e a alma mais tranquila, passaremos por ele de maneira totalmente diferente.

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