Quietude necessária
O excesso de atividades, o multitasking e outras fugas de nós mesmos não trazem apenas a infelicidade — são os primeiros sinais de doenças como a depressão e a ansiedade
O excesso de atividades, o multitasking e outras fugas de nós mesmos não trazem apenas a infelicidade — são os primeiros sinais de doenças como a depressão e a ansiedade.
Olhe à sua volta. Você vê alguém absorto em seus pensamentos? Vê alguém entediado ou a bocejar? Algum sinal de ócio, de abstração, de contemplação? Provavelmente, não. Não faz muito tempo, os metrôs das grandes cidades estavam cheios de livros. A curva descendente da venda de livros — um fenômeno mundial — dá conta que o ato de ler está desaparecendo. Claro: ler um livro demanda um esforço. Exige concentração, quietude, capacidade de abstração, imaginação… No lugar dos livros, colocamos algo muito mais passivo e atrativo: a tecnologia. Nas mãos há o celular. Quase como uma extensão nossa, ele carrega toda a nossa vida prática — conta no banco, as aulas da academia, o supermercado e, claro, as redes sociais. Passou de um objeto de comunicação para uma fonte permanente da nossa capacidade reativa.
Assim como cada época tem o seu estilo de viver, cada época tem também as suas doenças. E se engana quem pensa que vivemos a época das doenças virais. Graças ao conhecimento do sistema imunitário — uma das descobertas mais recentes da medicina — temos a solução: as vacinas.
Novos tempos, novas doenças
E quais são então, as doenças do nosso século XXI: as doenças neuronais. Estamos no tempo da depressão, da ansiedade, do transtorno por défice de atenção e hiperatividade (TDAH) e das diversas perturbações de humor e de personalidade.
E note a extrema ironia dessas doenças. Elas não vêm de um inimigo — vírus ou bactéria — detectável pelo nosso sistema imunitário. Não se trata de um elemento negativo detectável pelos exames. Não se trata mais de um agente externo, um estranho a ser rejeitado. O inimigo não é o negativo. É um positivo, algo considerado normal, atraente e bom. Porém, em excesso.
Por que não lutamos contra?
E é difícil escapar a esse excesso. Somos apaixonados por tecnologia. São objetos bonitos, úteis. São aliados, facilitadores das rotinas. Afinal agora fazemos tudo muito mais rápido do que em qualquer outra época da história. É a evolução! Ocorre que essa crença é um erro. O ser multitasking não é positivo, não é uma evolução.
Festejado como um atributo, principalmente, feminino — superpoder da mulher mãe, dona de casa e profissional — o multitasking não é um avanço civilizacional, como afirma o filósofo sul-coreano, radicado na Alemanha, Byung-Chul Han. É regressão ao nosso primitivo.
O multifuncionalismo é amplamente praticado pelos animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção fundamental para a sobrevivência no mundo selvagem. No seu estado natural, o animal — ao mesmo tempo que se preocupa com a sua alimentação — se ocupa de outras tarefas. Ele precisa monitorar a sua presa e manter os inimigos longe. E precisa cuidar ainda para que ele mesmo não seja atacado durante a refeição. E, ao mesmo tempo, precisa vigiar as crias e as fêmeas.
Sem tempo
Obrigados a dividir a atenção em múltiplas tarefas, a concentração e a contemplação não existem para os animais selvagens — nem durante a refeição, nem durante a cópula. O animal não é capaz da entrega amorosa, de afundar-se na intensa união com o outro, uma vez que sua atenção está dispersa com o que acontece ao seu redor.
Portanto, as múltiplas tarefas não aproximam você da evolução. Elas levam ao caminho contrário, levam para a sociedade humana da vida selvagem. Integrante do instinto de sobrevivência, o alerta permanente desgasta o corpo e adoece a mente. Eis aqui mais uma contribuição para as doenças neuronais.
Ok. você já desconfiava disso. Afinal, por mais que você faça, no fim do dia, há cansaço e frustração. A sensação de insuficiência, de falta de tempo é crônica. E aqui um assunto que foi tema neste mesmo espaço “A incrível sociedade das pessoas cansadas” (leia aqui). Porém, os prejuízos não ficam apenas no terreno das doenças. Atingem diretamente o nosso corpo metafísico. Diluídos na excessiva conexão com o exterior e na multiplicidade de tarefas, ficamos indisponíveis para a ligação com o nosso interior. Ficamos sem tempo para nós. Perdemos a conexão com o que somos e o que queremos.
Medo de olhar para o nosso abismo
Mas mesmo diante disso não recuamos. Ao contrário, acabamos por nos acostumar. Afinal o excesso de tarefas não é de todo ruim. Ele nos protege de questões maiores e mais profundas. Preenche as nossas cabeças com distrações que evitam questionar as nossas escolhas, e a nós próprios. E veja, também não temos tempo. Estamos ocupados demais fazendo conexão com pessoas desconhecidas, olhando para os outros. E queremos mesmo estar ocupados porque a reflexão interna, promove um encontro com o tédio, com a sensação de tristeza, daquilo que falta. Ela incomoda e deve ser evitada a qualquer custo. E com isso, vamos perdendo capacidade de enfrentamento. Uma espécie de atrofia.
E como se isso não bastasse, quando reservamos um tempo para nós — para as nossas questões internas — vem à tona a culpa pelo desperdício de tempo. Afinal, estamos encaixados no molde do sistema capitalista que já nos condicionou que somos acima de tudo, seres que produzem. Que tempo é dinheiro. A nossa hora é cara, não deve ser desperdiçada.
E a cultura?
A cultura também não nos protege. A tradição judaico cristã ensina que a cabeça desocupada consiste em uma espécie de perigo. O “cabeça vazia, oficina do diabo” ensina que quando estamos desocupados, o demônio ocupa-se por nós. O pensamento judaico-cristão, condena abertamente o ócio. Foi num momento de ociosidade — quando não seguiu o seu exército — que o grande rei David cometeu o maior do seus pecados. Veio a varanda e, ao contemplar o firmamento, viu uma bela mulher. Tratava-se de Bate-Seba casada com Urias. David fez com que Urias fosse morto na frente de batalha para ficar com ela. E os teólogos consideram esse episódio como um duplo pecado: foi o maléfico estado de ociosidade que levou David ao pecado.
Devemos esquecer essas crenças adoecedoras e fazer uma regresso aos gregos antigos. Nesta que foi uma das mais sábias sociedades de todos os tempos, o ócio era bem visto e considerado a gênese da escola — um lugar onde se aprende e se ensina. Aristóteles dizia que o ócio é quando estamos livres da necessidade de trabalhar e temos a oportunidade de pensar sobre a nossa vida e para onde estamos caminhando. Para os romanos, assimiladores da cultura grega — o ócio era o otium que significa “estou bem”.
A quietude
E aqui voltamos às doenças. O cérebro humano necessita da quietude dos momentos de ócio. E não se trata apenas de proteção contra as doenças neuronais. Antes delas chegarem, a mente já está bastante danificada. As redes sociais com os seus textos, imagens e vídeos podem ser agradáveis no imediato, mas traz uma sobrecarga cognitiva que nos impede de criar, planejar, inovar, lidar com conflitos, tomar decisões, gerir emoções… É um entrave para todas as ações necessárias à vida.
O estoicismo — corrente que enfatiza o lado prático da filosofia — diz que boa parte do que acontece na vida, metade é constituída por situações que primeiro passaram pela mente, situações vividas na alma. E depois — porque elas foram desejadas, projetadas — finalmente acontecem na vida de carne e osso. Portanto, a vivência interna é fundamental.
Então, põe-te a caminho. Experimente fazer uma caminhada com as mãos vazias. Entre os dedos, só o ar em movimento. Tome um café — mas só tome mesmo o café — não permita nada entre você e ele. Vá ler no parque ou numa esplanada. E entregue-se ao livro. Comece esses exercícios por períodos curtos e depois vá aumentando gradualmente o tempo de duração. Mas esteja preparado para oposição. E se você for visto como uma ave rara — alguém debruçado num livro de Nietzsche antes de uma sessão de cinema iraniano — não se importe de destoar do comportamento hegemônico. Respire fundo, você está conectado com você mesmo e, por isso, com o mundo. Você está pleno. O seu corpo está todo estendido na vida verdadeira. Na vida que vale a pena.
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