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Os cantos escuros que a gente mesmo cultiva
(Foto: Gwendal Cottin/Unsplash)
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Egle era amiga dos meus pais. Uma das primeiras pessoas que os acolheu quando, recém-casados, se mudaram para um prédio de três andares na Rua Eça de Queiroz, em São Paulo.

Mamãe e papai vindos do Recife. Egle morava no final do corredor térreo. Papai e mamãe no andar de cima. Por ser um imóvel no nível da rua, havia um pequeno quintal, que, contudo, ela não usava.

Egle era costureira. O marido, caminhoneiro. Tinham um filho. Mamãe adorava conversar com Egle. Nome diferente. Fui atrás e descobri que significa deusa do esplendor. A Egle que conheci era uma mulher generosa, amiga.

Entretanto, seu esplendor foi apaziguado pelo destino que escolheu para si. Tinha cabelos curtos, levemente volumosos. Castanho-claros. Estatura mediana – talvez ela fosse baixa, porque a lembrança de criança sempre nos engana.

Recordo pouco das feições de Egle, mas com exatidão dos detalhes do apartamento onde morava, dos cheiros e dos sentimentos que se encravavam no meu corpo de criança.

Apartamento escuro, com pouca luz natural. Móveis grandes em um espaço diminuto. Atmosfera gelada e impregnada por um forte cheiro de mofo. Dois quartos.

Tudo me sufocava, provocando náuseas. Para onde olhava, havia sobretudo coisas: revistas de moda, tecidos, roupas para serem cerzidas, cortadas, costuradas. Não entendia como era possível morar assim. Sem sol.

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Nos cantos escuros da memória

Demorei para perceber que não adianta ter quintal se não cultivar plantas. Ter janelas para esse mesmo quintal, se não as quiser abrir. Deixar o ar entrar. A luz se refratar. Respirar. Transformar. Viver.

Em um domingo de julho, falamos sobre vestidos de festa e lembramos da antiga vizinha, sua habilidade com as linhas e da amizade entre mamãe e ela. Perguntei se sabia de Egle.

“Não. Ligava sempre que podia, conversávamos. Um dia, ela não atendeu e nunca mais soube dela.” Fizemos uma conta rápida e entendemos que Egle, se viva, tem mais de 90 anos. “Provavelmente já se foi”, concluiu mamãe.

Passei na Rua Eça de Queiroz. Enfim, o prédio de três andares hoje deu lugar a um imóvel de muitos apartamentos, com varandas onde deve haver sol e calor.

No final das contas, somos nós que cultivamos os cantos escuros. Nossa casa apenas os reflete como um incômodo sussurrar ao pé do ouvido.

Mas a gente segue incrustada como se nada estivesse acontecendo. Até que um dia o telefone toca e ninguém mais atende.

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Conteúdo publicado originalmente na Edição 271 da Vida Simples

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