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O troco errado, o álbum de figurinhas e os ensinamentos de minha avó
Unsplash uma avó está abraçada com sua neta com cabelos loiros. Ela tem cabelos brancos e usa óculos.
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Educar pelo exemplo tem muita força. O problema é que, se a sociedade insiste em dar valor ao que temos, o que está além da aparência quase sempre é descartado  


Foi numa certa manhã dos 80 anos, em Peruíbe, no litoral paulista, que minha avó enterrou o velho ditado popular que diz “a ocasião faz o ladrão”.  Não sem antes me dar a pá, mostrou-me onde cavar para jamais esquecer que a honestidade é um bem precioso.

Nesta minha coluna de hoje em Vida Simples, quero recorrer à memória de um episódio que marcou minha infância para refletir com vocês o quanto é importante aprendermos, desde cedo, valores que nos ajudam a nos formar como seres humanos. Quem sabe, assim, diminuímos um pouco o ímpeto de achar que o problema está sempre fora da gente. 

Aliás, como estamos em semana eleitoral e os debates costumam ser mais acalorados e quase sempre acusatórios, nunca é demais lembrar que só mudaremos como sociedade, se primeiro operarmos mudanças e valores dentro de nós. E a honestidade talvez seja um bom ponto de partida. 

Então, deixe-me voltar a Peruíbe…

O silêncio do troco 

Eu tinha sete anos e, naquela época, minha vida se resumia a esperar ansioso pelo início da Copa do Mundo da Espanha. Sem ter a menor ideia de como seria meu dia, desci a rua de casa em direção ao mercadinho, mordiscando pelo caminho uns coquinhos que caíam às pencas dos galhos compridos do Chapéu de Sol – árvore típica do litoral paulista. Descontei na mandíbula a irritação daquela manhã por ter que abandonar o capítulo do Sítio do Pica-pau Amarelo para comprar uma lata de creme de leite, sei lá pra que….

Saquei do bolso da bermuda o dinheiro dobrado e entreguei para a moça do caixa junto com a lata:

– Você não tem trocado, garoto?

– Não, respondi com a cabeça, desconfiando se tratar de uma funcionária nova no mercadinho do Japonês. 

Ela girou a manivela da caixa registradora (só os nascidos antes dos anos 80 se lembrarão desse trambolho) que cuspiu a gaveta num solavanco puxando um punhado de notas de cruzeiros e algumas moedas e, logo em seguida, repetiu mentalmente a contagem antes de me entregar o troco. 

Numa fração de segundo, percebi que ela havia deixado passar uma nota de 10 mil cruzeiros a mais. Silenciei. A única coisa que me veio à cabeça naquele momento foi Sócrates, não o filósofo, que por certo teria me feito agir de outra maneira, mas o craque da seleção brasileira, o Camisa 8 da amarelinha que estava me faltando para preencher o álbum de figurinhas da Copa. 

Saí do mercadinho e fui direto para a banca de jornal do outro lado da avenida e entreguei para o seu Jorge os 10 mil cruzeiros que, pra mim, nada mais significava que 10 envelopes de figurinha. Coloquei-os no bolso e subi a Rua Flórida cantarolando a música que embalou aquele Mundial de 82: “Voa, canarinho, voa, mostra pra esse povo que és rei….”

O exemplo

Foi eu chegar em casa e contar o ocorrido para a minha avó para vê-la, numa outra fração de segundo, tirar o avental úmido da cintura, jogá-lo no tanque e me pegar pelo braço, me conduzindo novamente ao mercadinho. 

Plantada à frente do estabelecimento, Dona Nena puxou uma nota de 10 mil cruzeiros da sua bolsinha de pano adornada de lantejoulas e a selou em minha mão com tamanha força para logo em seguida apontar com um leve movimento de cabeça a direção que eu já sabia que deveria seguir. Pelo espelho do alto que refletia as gôndolas do mercadinho minha, avó só me observou caminhar com os ombros um tanto caídos até o caixa e devolver para a atendente aquilo que nunca foi meu. 

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Relembrar agora, enquanto escrevo este texto, dessa passagem da minha infância e do quanto ela me ajudou a me formar como ser humano, me provoca uma profunda emoção, afinal, perdi a minha avó há pouco mais de um mês e sei o quanto ela foi importante na minha jornada. No entanto, esta lembrança é capaz também, ao mesmo tempo, de me levar a uma reflexão, desprovida de qualquer questão moral, de como são nos pequenos atos e gestos que as verdades se assentam. Sem verdade não chegaremos a lugar algum, meus queridos leitores.

Muitas vezes, idealizamos para nossos filhos grandes conquistas, um futuro cheio de realizações e tudo isso é muito legítimo, reconheço. Mas, há momentos em que um simples gesto de não fazer uma conversão errada para cortar caminho enquanto retorna com os filhos da escola, silenciar a nossa impiedosa vontade de responder a tudo enquanto o outro fala, são tão ou mais importantes do que aquilo que nos disseram ser a verdadeira realização humana. 

Ensinar pelo exemplo tem muita força. O problema é que, numa sociedade que insiste que o que vale é o que eu tenho pra mostrar, o que está além da aparência quase sempre é descartado.  


PATRICK SANTOS (@patricksantos.oficial) é jornalista, escritor e apresentador do podcast 45 Do primeiro tempo que semanalmente traz histórias de pessoas que se reinventaram. É autor também do documentário “Pausa”. Depois do sabático em 2018, nunca deixou de trazer à memória histórias que remetem a bons exemplos.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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