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Não há morte quando a despedida tem a força do amor
Dominik Lange
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Existe uma sutileza que permeia toda relação humana e ela se manifesta quando substituímos o interpretar pelo sentir. Quando isso acontece, um simples piscar de olhos tem a potência a de um abraço e o leve gesto de um lábio que busca força em seu contorno fragilizado diz o que as palavras nunca alcançam.


Sentado em meu escritório, sinto uma leve brisa atravessar a janela aberta que emoldura o entardecer de inverno. No céu, nuvens brancas se deslocam lentamente salpicadas pelo flanar de alguns pássaros. Ao fundo, um avião risca em linha reta o horizonte, enquanto as montanhas da Serra da Cantareira contemplam a cidade a seus pés. Mais um dia está indo embora.

Em meu silêncio, deixo meus olhos vagarem pelo recorte da janela, enquanto meu coração me mostra que a vida é movimento o tempo todo, um constante pulsar pela eternidade.

Nestas duas últimas semanas os dias têm sido mais longos para mim. É como se a vida estivesse insistindo para me mostrar que entre um entardecer e outro não existe fim, apenas uma passagem.

Desculpe por este início um tanto poético, talvez até enigmático, mas há momentos em que somente nas sutilezas conseguimos alcançar aquilo que muitas vezes escondemos de nós mesmos para nunca enxergarmos.

A dor da partida

Tenho passado boa parte dos meus últimos dias sentado ao pé da cama de minha avó. Dona Nena está nos deixando, ou melhor, está fazendo a sua passagem para um outro plano da existência.

É assim que tenho procurado encarar a experiência terrena desde que resolvi me abrir um pouco para os mistérios da vida, ou pelo menos não resistir aos desígnios da jornada humana. É claro que não está nada fácil aceitar essa partida, os cantos de minha casa sabem o tamanho da minha dor, mas hoje prefiro intuir que tudo tem seu momento certo, que nada está fora do tempo. Nada, absolutamente nada!

É essa experiência de estar perdendo alguém próximo, de ver e presenciar as últimas voltas do ponteiro do relógio de alguém que amo, que quero dividir com vocês nesta minha coluna de Vida Simples.

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Sopro divino

Minha avó, a qual chamo de mãe, afinal, fui criado por ela, foi acometida por uma infecção óssea que se espalhou pelo corpo todo. No começo de agosto fomos informados pela equipe médica de que não havia mais nenhum tratamento capaz de reverter o quadro de Dona Nena. Optamos então pelos cuidados paliativos à base de morfina, o que lhe tem mantido num sono profundo na maior parte do tempo. Ela está vivendo seus últimos dias.

Ali, sentado ao pé de sua cama durante as tardes, me vem a certeza de uma coisa: minha avó não é aquele corpo que definha a minha frente. Esse corpo mirradinho, esparramado sem força no leito hospitalar, é só um corpo cujo tempo se encarrega de levar.

O que quero dizer com isso é que existe um sopro de vida em cada corpo, algo que nos anima, que nos move, que nos faz ser quem somos. Esse sopro a que me refiro é que é a vida de fato… O resto, é só um corpo.

Quando volto meu olhar para minha avó ali deitada na cama me pergunto: onde está aquela dona Nena que até ontem ainda conversava conosco? Algo me “sopra” ao ouvido:

“Está na cozinha, está no entorno do fogão nos almoços de domingo, está tirando as ervas daninhas dos canteiros da roseira, nos galhos de primavera, está nas estradas de terra da sua Minas Gerais querida…”

O sopro, com perdão do trocadilho, está sempre no ar, no ar que não vemos, mas que sentimos e que sempre sentiremos. O sopro de minha avó se prepara para estar em todos os lugares.

O sopro é a vida de fato. O sopro não morre.

Quando o silêncio se comunica

Optei por estar junto de minha avó todos os dias nessa sua despedida. Isso me fez descobrir que a comunicação também acontece no silêncio. Diria mais, é no silêncio que o coração ocupa o lugar da mente e a verdade aflora.

Existe uma sutileza que permeia toda relação humana e ela se manifesta quando aprendemos a sentir, muito mais do que interpretar. Quando isso acontece um piscar de olhos tem a força de um abraço, o leve gesto de um lábio que busca força em seu contorno fragilizado é capaz de dizer o que as palavras nunca alcançam.

Posso dizer que o quarto 408 do hospital tem presenciado boas conversas no silêncio entre eu e minha avó nestes últimos dias.

(…)

Perder alguém muito próximo sempre nos leva a refletir sobre a vida. Penso, inclusive, que a morte diz muito mais sobre quem fica do que sobre quem vai, por isso estar em dia com um sentimento mais leve pode ajudar.

Muitas vezes passamos boa parte de nossas vidas nos escondendo atrás de quem verdadeiramente somos, deixando de expressar nosso amor mais profundo, nossa real essência humana, sem nos darmos conta de que a única coisa que importa são as relações humanas. Nós nos encontramos no outro.

Não me cabe aqui julgar ninguém, cada um sabe as dores e alegria que carrega em sua jornada. Sei também que as relações humanas são conflituosas, estão sempre carregadas de dores e de um passado que está sempre ansiando por respostas. No entanto, o único caminho que pode nos conduzir a uma vida mais plena é o amor. E ele se expressa de muitas maneiras.

Quando olho hoje a minha avó, deitada na cama prestes a nos deixar, é no amor que ela espalhou que sinto a sua presença. Aliás, ela sopra ao meu ouvido.

Leia todos os textos de Patrick Santos em Vida Simples.


PATRICK SANTOS (@patricksantos.oficial) é jornalista, escritor e apresentador do podcast 45 Do primeiro tempo que semanalmente traz histórias de pessoas que se reinventaram. É autor também do documentário “Pausa”. Depois do sabático em 2018, nunca deixou de tomar um café ao pé da cama de sua avó.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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