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O novo pede um abraço demorado
Saltanat Zhursinbek | Unsplash
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Este ano resolvi resgatar um sonho antigo. Tão antigo que achei que já não fazia mais sentido para a vida que tenho hoje. Mas eu, como a maioria das pessoas, tenho dificuldade em desistir. Ficamos anos com uma ideia na cabeça e, quando percebemos, ela faz parte de nós.

E, após meses de ponderação, abracei com força a aventura. E cá estou eu, no sul da Inglaterra, no condado de East Sussex — junto ao Canal da Mancha — em Eastbourne. Uma cidade que, meses atrás, eu nem sabia que existia.  Mais do que reservar um mês para imersão no inglês, ansiava pelo novo. Não se tratava apenas do batido “sair da zona de conforto”. Queria experimentar um novo gigante, absoluto. E não poderia ter feito melhor escolha.

Viver em outra cultura é ser contrariado a cada segundo. O novo está em cada passo que você dá. A extrema gentileza do motorista do ônibus. Árvores e flores completamente desconhecidas. A dificuldade em guardar nomes de ruas e percursos numa língua que não é a sua. Choques pontuais. A perplexidade do seu cérebro quando se dá conta de que um carro está se movendo sem um motorista. Claro: o motorista está no outro acento!

Sim, sabemos que no Reino Unido ­ — e em mais 55 países — a condução é feita pelo lado esquerdo. Mas o primeiro segundo é de confusão. Atravessar a rua pode ser perigoso, porque segue outra lógica. Você nunca espera que um carro trafegue na contramão — porque é assim que parece. A minha casa aqui é cercada de jardins, não há muros e a porta de entrada está sempre destrancada. Perde-se a referência para reconhecer pessoas. É muito comum ver senhoras de estilo clássico, mas com o cabelo azul turquesa. É uma instabilidade permanente que absorve toda a nossa energia e no fim do dia estamos exaustos.

Hoje parei para observar o que acontece com as outras pessoas que estão vivendo a mesma experiência. Notei que a maioria, desde o primeiro dia, arrumou amigos do mesmo país ou do mesmo idioma. Já sabia desse “perigo” e decidi que eu não me abrigaria nesse refúgio. Não falaria português em nenhum momento. O resultado foi a riqueza de conquistar quatro amigas maravilhosas: duas chinesas, uma japonesa e uma polonesa.

Mas compreendo as razões de quem sucumbiu a essa segurança.  A comunicação aconchega. Compreender e ser compreendido é uma necessidade humana, quase com a mesma importância do oxigênio. Com o excesso de instabilidade, vem o medo e a sensação de insegurança. Para contrariar esse desconforto, as pessoas procuram a estabilidade que vem do outro, daquele que partilha a mesma língua, a mesma história, a mesma cultura.

É a mesma lógica das pessoas que mudam para um país estrangeiro e passam toda a vida restritas ao seu gueto. É muito comum, por exemplo, árabes que vivem há 20 anos na França levarem a mesma vida que viveriam se estivessem no seu país de origem.

Mas ao mesmo tempo, são razões que estão na categoria das contradições humanas. Então não somos ávidos para viver o novo? Novas alegrias, novas experiências, novas riquezas, novas formas de felicidade. É. Ocorre que o novo não vem sozinho, ele partilha espaço com o temor. Queremos o novo, mas o novo ligeiro, em doses pequenas, sem sobressaltos, como um abraço sem muita certeza. É difícil estar exposto ao incerto, queremos a permanência, o seguro.

Por mais que eu leia sobre novas formas de pensar a vida, volto sempre aos primeiros pensadores porque considero a visão grega ainda a mais sábia.  No grego antigo havia várias palavras que se aproximam do nosso conceito de felicidade. A eudaimonia, por exemplo, literalmente significa “o estado de ser habitado por um bom gênio” e, nos dias atuais, é traduzido como felicidade ou bem-estar.

Outros defendem que a tradução mais correta seria “o estado de plenitude do ser”. Porém, penso que a ideia a reter é a de que eles compreendiam a felicidade como um bem ou poder concebido pelos deuses. E recomendavam que para mantê-la não era uma boa ideia se indispor com as divindades. E sabendo-se que os deuses gregos eram caprichosos, ciumentos e algumas vezes cruéis, essa era uma tarefa que exigia sabedoria.

E mesmo agradando aos deuses não havia garantias, diziam os gregos. Por qualquer motivo arbitrário corria-se o risco de perder a eudaimonia se os deuses assim o desejassem. A felicidade era considerada uma espécie de fortuna ou acaso – enfim, um bem instalável que dependia tanto da conduta pessoal, como da vontade divina ou da sorte.

E, a partir dai, começou a nossa luta. Perseguimos desesperadamente as certezas: a vida para a eternidade, o amor para sempre…  Platão e Sócrates foram os primeiros a percorrer esse caminho: a busca de uma felicidade instável, permanente, de casa.

É uma busca válida, mas penso que a perspectiva deve ser levemente alterada. Já que o instável também faz parte do caminho, a atitude mais sábia e aceitá-lo e apreciar os seus encantos. Mesmo na turbulência, descobri nas terras de sua majestade que há outras possibilidades de existir. Identifiquei e me identifiquei com valores novos e que agora considero que eles também são meus.

Por contraste, enxergo melhor e com mais profundidade aquilo que sou. Reconheço que não é uma vivência fácil e o grau de dificuldade é maior para uns do que para outros. Mas há um exercício mental para quem quiser experimentar (ou se arriscar):  a certeza de que tudo que hoje é aceito, amado e dado como absoluto, justo e natural, na sua gênese foi algo inaceitável.

A genealogia da moral nietzschiana dá conta que o casamento quando surgiu foi alvo de reações muito negativas (ok. muitos continuam achando isso até hoje – mas por outros motivos). “Como assim, casar? A mulher é de todos. Que egoísmo é esse? Uma mulher só para você?”. A ideia do casamento era — antes de tudo — um ato injusto, uma agressão à comunidade.

E por falar em justiça. A ideia de castigar o faltoso com o encarceramento foi alvo de muitas revoltas. Principalmente para o lesado e sua família. O julgamento e a condenação à prisão eram vistos como um ultraje. “Eu não quero saber de justiça, eu quero vingança — e vingança sangrenta. Quero infringir dor a quem me fez mal”.

Com esse pano de fundo, proponho que você receba o novo com tolerância e generosidade. Não procure apoio para diminuir a sua força ou torná-lo mais digerível. Queira-o assim mesmo, agreste e temerário. Abracei-o demoradamente, como um amigo de longa data. Quando incorporamos o novo, evoluímos para um nível acima, tornamo-nos pessoas melhores, mais fortes e mais sábias.

MARGOT CARDOSO (@margotcardosoé jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

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