A vida com simplicidade não é um lugar, é um modo de viver
Não dá para esperar que uma fuga para longe da cidade garanta uma rotina mais leve e offline. É preciso construí-la agora, em coletivo - e isso é revolucionário
“Hum, Que inveja boa!”, “Adoraria levar uma vida assim”, “uau, que coragem”, “Quero!”, são algumas das reações de quem escuta o podcast De Saída – a vida fora da internet, que revelou o paradeiro de uma das mais saudosas youtubers brasileiras: Jout jout. Ela, que sempre demonstrou uma autêntica simplicidade em seus vídeos, hoje é moradora de uma cidadezinha de mil habitantes, sem TV, sem Wi-Fi, sem rotina superprodutiva. Jout Jout vive simples de verdade e tem dado o que falar.
Dentre as tantas reflexões que podem ser levantadas a partir de um recorte dessa história ainda muito preservada, a que mais me atravessa é como simplicidade tem habitado o imaginário coletivo (ao menos da bolha da internet que transita entre Instagram e threads) como algo distante, para poucos. E, devido ao burburinho da temporada, quase um sinônimo de largar tudo e viver uma rotina pacata.
A minha impressão é que, para além do encanto com a coragem com a escolha abdicar de carreira e agito cultural, parece que tanto os millennials quanto a geração Z ainda não descobriram que simplicidade mora em atitudes e não em um lugar. Embora, sim, almejar um cantinho na natureza é quase uma unanimidade entre os desejos de quem desperta.
Simplicidade é para quem tem coragem
Tem se discutido sobre o privilégio dessa escolha. Sim, ele existe. Mas é aí que encontramos outra reflexão: como estamos usando esse privilégio?
Todo mundo parece desejar a tal simplicidade de Jout Jout (até então contada a partir de um recorte bem resumido), mas será que estão prontos para uma rotina sem cafés e jantares superfaturados, trânsito caótico para ir “ali”, distância das vassouras e um cotidiano desacelerado?
Para quem não acompanhou: Júlia decidiu retirar-se do ambiente urbano para viver o anonimato de uma vida off-line. E, neste processo, descobriu a não-terceirização da vida.
Dedicada ao movimento do lar – onde vivem ela, o companheiro e o filho de um ano e meio – ela contou, com ares de descoberta, que limpa a própria casa, faz a própria comida, lava roupa, plantam algumas coisinhas, etc. E que, de tanto andar a pé pelos arredores, passou a se sentir mais forte e saudável.
E é a partir desse recorte que eu quero compartilhar um ponto-chave: a vida pode ser simples em qualquer lugar: não é onde, mas como. Uma perspectiva trazer a simplicidade, ainda que imperfeita, para diferentes cenários em cidades como São Paulo.
O exemplo da Jout Jout
Há quem fuja das cidades em busca de ar mais puro, custo de vida infinitamente mais barato (ajuda muito na vida simples vida-real!) e é verdade que o ambiente nos influencia. Mas pensando no estilo de vida que virou tema de desejo: o que da lista de feitos cotidianos de Jout Jout não pode ser praticado em qualquer lugar?
Se ser simples parece tão atraente, por que não deixar de ter TV morando em SP? Por que não reduzir o tempo recreativo de tela agora? Porque não desacelerar agora, mesmo trabalhando e vivendo num grande centro urbano? Porque não tirar a tela das crianças e oferecer mais contato com a terra (seja no quintal, seja na pracinha)? Por que não parar de terceirizar tanto a vida?
Talvez porque abraçar a simplicidade idealizada, para alguns, vai dar trabalho. Para outros, será preciso desacelerar demais. A maioria não estará preparada para o principal: menos idealismo e menos consumismo.
Buscar a não-terceirização da vida
Como ouvi dia desses em uma reflexão do professor de yoga Marcus Rojo, durante um episódio sobre minimalismo do Renaturaliza Podcast,
“A sociedade do cansaço não tem muita energia para promover mudanças”.
Talvez por isso a gente tenha normalizado tanto a ideia de terceirizar tudo. Do cuidado doméstico ao bem-estar. Vivemos em um círculo vicioso. Como romper este ciclo?
É preciso terceirizar menos, o quanto possível for, a manutenção do próprio cotidiano. Cansa, mas é um caminho.
E nem é apenas sobre a sustentabilidade financeira, mas também porque nos leva a resgatar hábitos que trazem autonomia e nos deixam menos dependente do sistema.
Mas quem está disposto a limpar a própria privada, cuidar do pó dos próprios móveis e fazer a própria comida, criar as próprias filhas e filhos? “Mas quem vai trabalhar enquanto limpo e troco as fralda”, podem questionar alguns. E aí vem outra pergunta: quem quer sair da zona de conforto e abrir mão de hábitos que soam quase que como status?
Talvez não seja apenas quem queira, mas também quem possa. Afinal, para quem não tem o privilégio, a exaustão pode bater à porta da vida simples.
O ciclo da sensibilidade e da simplicidade
Simplicidade, bem como minimalismo, não é uma estética de “ton sur ton” ou formas minimalistas. Aliás, tem sofá desbotado, furinho na blusa e potinho de plástico daqueles que nem lembramos a data. Tem interesse no outro, sem saber o que o outro faz/tem.
A verdade é que o individualismo também nos distanciou do essencial. Afinal, ninguém precisa morar numa cidadezinha de mil habitantes para cultivar (e resgatar) outro pilar inegociável para uma vida plena: o senso de comunidade.
É sobre saber o nome dos vizinhos mais próximos, dar bom dia olhando no olho, se engajar em iniciativas locais (tem plantio de árvores no bairro? Tem composteira coletiva? Tem grupo de apoio?). É sobre ter tempo e intencionalidade para observar o outro.
Definitivamente, a vida simples não é um lugar, é um modo de viver.
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