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Lugar de filosofia é na cozinha
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Cozinhar é, acima de tudo, um ato de entrega, de amor e também de consciência. Requer virtudes tais como planejamento, criatividade e, acima de tudo, vontade.

Quando essas virtudes não estão sincronizadas no presente e o cozinhar torna-se ato obrigatório, uma tarefa que se realiza lamentando, o resultado segue a lógica e surge também de forma lamentável. Cozinha é o lugar que oferece um dos mais instantâneos feedbacks que podemos ter em nossas vidas. É lá que a sinergia entre coração e razão – ou a falta dela – revela-se em minutos. Na riqueza sensorial que uma cozinha traz em si, entre panelas, utensílios, ingredientes, temperos, forno, grelha e fogão, é possível deparar-se com algumas questões filosóficas práticas que permitem-nos perceber nossas próprias vulnerabilidades. Com isso, ampliamos nosso estado de consciência na busca de uma vida mais feliz. Neste texto, falarei sobre algumas delas, percebidas no calor do ato de cozinhar para familiares e amigos.

O que um pacote de feijão pode ensinar sobre os nossos problemas

Qual seria o peso verdadeiro dos nossos problemas? Além do peso que decorre das causas e efeitos de cada um, há um peso que é relativo e diz respeito ao tempo em que os carregamos, mesmo que já tenham sido resolvidos. É fácil testar isso na prática carregando um pacote com três quilos de feijão. Segurá-lo inerte por alguns minutos é até suportável, sem danos ou incômodos. Já ao segurá-lo ininterruptamente por uma hora, o peso relativo aumentará consideravelmente. O feijão, leve no início, pesará algumas ‘toneladas’ após algum tempo. Por inércia devemos entender segurá-lo parados, sem um apoio físico qualquer ou sem a ajuda de alguém.

Pior que segurar de forma inerte o saco de feijão, ou o nosso problema, é não saber a hora certa de deixá-lo na página que lhe cabe na nossa história. E, a partir daí, seguirmos em frente, principalmente quando aquilo que era problema (no tempo em que ainda havia alguma possibilidade de solução), já tornou-se fato consumado, não tem mais volta. Passamos uma parte considerável do nosso tempo remoendo problemas que já viraram fatos, piorando consideravelmente nosso estado de espírito. “O que não tem solução, solucionado está”, pensamento de autoria desconhecida, ilustra a maturidade a se atingir diante daquilo que é fato e que já está cravado no tempo.

O que o forno à lenha pode ensinar sobre ressignificação

Todo forno à lenha possui uma base de pedra refratária. É nela que se assentam as massas na hora de assar, sejam pães, pizzas ou outras iguarias. Poucos percebem, mas depois de alguns meses de uso, esse fundo de pedra ganha uma identidade própria. Uma impressão digital única, marca exclusiva das experiências que ele viveu, sejam elas bem 100% bem-sucedidas, sejam decorrentes de molho que escorreu acidentalmente, massa que passou do ponto, entre outras. Cada mancha carrega em si uma história vivida entre familiares, amigos ou, em muitos casos, apenas por nós mesmos.

Na nossa história pessoal, também reunimos marcas que não se apagam com o tempo. Atribuir valores a elas é o que nos permite ressignificar muito daquilo que um dia tenha causado algum aborrecimento ou uma intensa alegria. A consciência de cada marca que carregamos em nós, bem como da finitude que invariavelmente nos aguarda, possibilita-nos passar verdadeiramente pela vida e não apenas deixa-la passar por nós. É preciso ter orgulho dessas marcas, por mais que, no seu tempo, elas tenham sido dolorosas. Afinal, como bem sabemos, as cicatrizes só se formam em corpos que ainda estão vivos. E estar vivo é um privilégio a agradecer todos os dias.

O que uma receita pode nos ensinar sobre planejamento

Mis-en-place é a expressão que, na cozinha, define o planejamento feito antes de ligar o fogo. Grande parte do sucesso de um prato reside nessa etapa que, no senso comum, não carrega o mesmo romantismo da hora do fogo em si. A busca pelos melhores ingredientes, a separação e quantificação, a definição do corte de cada alimento, a ordenação de uso, panelas e utensílios à mão são etapas essenciais na cozinha. Além, é claro, de uma antecipada leitura e interpretação da receita, o ‘mapa’, evitando surpresas indesejadas quando o alimento já estiver no fogo. Sabe quando você vai buscar um ingrediente já tendo iniciado o preparo do prato? Pois é.

Planejamento significa entender que, para fazer coisas grandes, é preciso começar pequeno, visualizando o caminho que se irá percorrer, percebendo o processo, minimizando danos e perdas. E empenhando afeto suficiente para transformar ingredientes antes soltos em combinações saborosas e atraentes.

O que panelas vazias podem nos ensinar sobre crises

“Eu sei que dói no coração, falar do jeito que falei… dizer que o pior aconteceu… pode guardar as panelas que hoje o dinheiro não deu…”. Estes versos fazem parte de um samba magistral composto há mais de 40 anos pelo também magistral Paulinho da Viola. Note que curioso: ele fala sobre crise. E está aqui, nesta parte da nossa reflexão, apenas para lembrar que, mesmo quando tudo parecia estável à nossa volta, o mundo sempre estava digerindo uma ou várias crises, nos mais diversos ambientes: político, econômico, ambiental e por aí vai.

Neste exato instante pisamos sobre um mundo que está nascendo e um mundo que está acabando. Ontem foi assim. Amanhã também será assim. Independente dos dias que já vivemos, sempre estivemos nesta intersecção. Pense nas crises que já viveu e responda a si mesmo: ao longo dos anos, depois da digestão do fato em si, você se tornou mais forte ou mais fraco? A probabilidade de ter ficado mais forte é maior, o que demonstra que crise representa, antes de mais nada, a mudança, a reinvenção, a única certeza da vida, depois “daquela outra”. Quando a mudança chega, as alternativas que nos restam são poucas. Duas apenas, para ser mais preciso: ser vítima, deixando que a mudança nos abrace como bem entender, ou ser protagonista, entendendo a mudança, abraçando-a e também promovendo transformação, a começar pela nossa própria.

O que a massa de pão pode nos ensinar sobre resiliência

A massa de pão é uma excelente metáfora para explicar a nossa resiliência. Ela nasce da convergência de elementos distintos que, misturados, precisam ganhar consistência ao ponto de tornar-se independente e desgrudar-se das nossas mãos. Então, é submetida à experiência da sova. Surrada e cansada, repousa para um breve refazimento. Acontece então um crescimento silencioso, preparando-a para mais uma fase desafiadora imposta pela receita da Vida. Um breve tempo depois é despertada bruscamente e, mais uma vez, surrada até ficar sem ar. Segue-se a provação, que a divide em pedaços, a enrola e a coloca sob calor intenso, onde permanecerá durante algum tempo.

No calor do forno é onde acontece a transformação, que torna aquele pedaço de massa crua em algo mais potente. Alguma semelhança com sua vida? Na intensidade das crises que nos surram, nos tiram o oxigênio, nos dividem em pedaços, nos enrolam e nos submetem a um intenso calor, é que conhecemos de forma prática o significado de resiliência humana, que vai um pouco além do conceito originado na Física dos Materiais. Afinal, somos resilientes quando acusamos crescimento real depois de dolorosas experiências e não apenas uma volta ao nosso estado anterior.

O que um pé de manjericão pode nos ensinar sobre decisão

O melhor do pé de manjericão são as folhas. Podemos dizer que elas são a sua grande força, de onde emana o sabor que encanta olfatos e paladares em todo mundo. O que pouca gente sabe, especialmente quem começa a cultivar temperos em casa, é que para ter folhas mais verdes, suculentas e saborosas, é preciso tomar uma decisão dolorosa: cortar sempre as flores do manjericão, por mais graciosas que sejam. Dessa forma, os nutrientes que as alimentariam são redirecionados para aquilo que efetivamente gera valor na cozinha, mantendo a planta sempre forte e produtiva.

A lição do manjericão, para a cozinha e para a vida, é clara: toda decisão implica invariavelmente em uma ou mais renúncias. Querer abraçar tudo pode acabar nos deixando abraçados a nada ao final. Sabedoria é lidar com essa dualidade de forma madura e serena, ajustando o foco para aquilo que nos interessa e, muitas vezes, abrindo mão de questões, ambientes ou relações que, por mais agradáveis que possam parecer, acabam sempre por enfraquecer nossa potência e drenar nossa capacidade de extrair o melhor de nós mesmos.

O que uma chapa de ferro nos ensina sobre os ciclos da vida

Se você já teve uma chapa ou panela de ferro na cozinha – e não compreendeu o ciclo e os rituais que envolvem seu uso – certamente a encostou, ou até mesmo passou pra frente após algum tempo de uso, achando que ela havia estragado. A ferrugem tomou conta e, mesmo lavando, nunca foi a mesma coisa, certo? A vida tem ciclos: começo, meio e fim, que sempre carregam em si a oportunidade do recomeço numa nova consciência. Compreender o fechamento de um ciclo, preparando-se para o próximo, é o que faz de nós pessoas que agem com sabedoria, e que não apenas carregam conhecimento dentro de si.

No caso da chapa de ferro, todo final de uso pede uma limpeza com esponja grossa, seguida de secagem ao fogo e selagem com óleo frio. Feito isso, ela estará sempre pronta para outra. Todos nós temos rituais que marcam nossas retomadas, cada vez que um ciclo encerra-se, abrindo outro em seguida. Como digo num dos capítulos do livro Plano de Trabalho para Toda Vida (DVS, 2020), para todo game over, existe sempre um play again.

A pandemia, como todos sabemos, está representando para muitos o encerramento de um ciclo, mesmo que ainda, ao se olhar para o futuro breve, ainda não seja possível tangibilizar direito o que está por vir.

Neste estado de impermanência, ser coerente a valores e virtudes que nos possibilitam uma vida sustentável e ética, é questão que fortalece nossa capacidade de agir e reagir com as mudanças, nunca deixando de ser quem somos.

No turbilhão da crise, assim como diante de um livro de receitas que nos cai às mãos, podemos até estar inseguros quanto àquilo que desejamos. O mais importante é sempre termos a certeza daquilo que não queremos.

Na cozinha ou na vida, a oportunidade de transformar conhecimento em sabedoria, e sabedoria em atitude, é o que nos ajuda a manter uma postura filosófica e serena frente à toda impermanência que nos envolve, permitindo-nos identificar e influenciar da melhor forma a parte que nos cabe. Bom apetite!


Eduardo Zugaib – Escritor, consultor e palestrante. Autor dos livros A Revolução do Pouquinho, O fantástico significado da palavra Significado, Humor de Segunda a Sexta e Plano de Trabalho para Toda Vida – www.eduardozugaib.com.br – Instagram @eduzugaib

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