Nem toda receita precisa ser seguida à risca
Subverter e sair do modo de fazer tradicional pode ser um ótimo aprendizado para a cozinha e para a vida
Subverter e sair do modo de fazer tradicional pode ser um ótimo aprendizado para a cozinha e para a vida
Três ovos. Uma lata de leite condensado e a mesma medida de leite. Açúcar para a calda de caramelo. Essa é a receita do tradicional pudim de leite da minha mãe. Simples, com poucos ingredientes. Apesar da quantidade escassa de ingredientes, a variável de resultados pode ser grande. O pudim da minha mãe, por exemplo, às vezes fica cheio de furinhos e, às vezes, parece mais uma ambrosia e não um pudim. É que minha mãe adora fazer experimentações na cozinha.
Nada que ela faça, de fato, planejado. Em muitos momentos isso acontece porque um ingrediente faltou e ela testou seguir com o doce mesmo assim. E já aconteceu também de ela estar com pressa e pular etapas. Minha mãe é assim: um misto e praticidade com uma certa dose de impaciência e ansiedade para algumas coisas. “Pra que deixar o caldo apurar se eu posso resolver isso mais rápido?”, ela diria. Foi assim, experimentando e sabotando a própria receita, que ela acabou descobrindo que o pudim pode ganhar sabores e nuances diferentes de acordo com o modo de preparo.
Uma vez, ela fez com dois ovos em vez de três. Não sentimos muita diferença no resultado. Outro dia, cansada do processo de fazer o pudim cozinhar em banho maria, ela colocou no forno, sem banho maria. E o resultado foi bem interessante, mas definitivamente não dá para chamar de pudim. É o tal resultado que lembra a ambrosia. Fica baixo e bastante caramelado, bem doce. Interessante. Minha mãe faz tudo isso sem pesquisar muito.
Faz porque quer, seguindo suas vontades, respeitando seu tempo. No início, achava isso um absurdo. Receita existe para ser seguida, afinal. Mas depois percebi que existe uma beleza até quando questionamos aquilo que parece tão certo. Dessa forma podemos descobrir algo novo – ou não. Alguns chefs de cozinha descobriram, ao errar algum processo de uma receita, novos pratos. O livro Tô Frito! (Rocco), de Luciana Fróes e Renata Monti, traz uma coletânea de desastres na cozinha que resultaram em ótimas surpresas.
É errando que se aprende
A chef brasileira Roberta Sudbrack fez um baita sucesso em eventos internacionais de cozinha com a sua farinha de banana. Conforma conta no livro Tô Frito!, Roberta estava testando as várias reações da banana de acordo com a temperatura a que era submetida. “De repente, vejo um cozinheiro passando encolhido, tentando se esconder e carregando uma travessa enorme cheia de bananas que, na visão dele, tinha passado do ponto num dos testes”.
Antes que ele jogasse tudo no lixo, a chef sugeriu que deixasse secar mais um pouco e, depois, bater no processador. O resultado foi uma farofa lisa e deliciosa. E foi assim que nasceu a farofa de banana, um ícone no cardápio da premiada chef.
É claro que seguir a receita é importante. Quem trabalha em restaurante, com comida, sabe a importância disso, do registro. Uma receita não existe apenas para ocupar espaço no papel. Ela está ali como um caminho para ser seguido, quase como um ato generoso para que mais gente possa compartilhar daquela delícia. Os registros familiares então… tem o poder de fazer a gente lembrar daquele sabor mesmo quando a pessoa que amamos – e que cozinhava aquele prato maravilhosamente bem – não está mais ali.
Nem sempre as coisas acontecem como gostaríamos
Mas existe um lugar nisso tudo que é a nossa capacidade de, de vez em quando, subverter e experimentar. Pode ser que dê certo e pode ser que não. E tudo bem. Acho que na vida muitas vezes é assim. Seguimos a “receita”, que ensinaram pra gente, ou os passos que nos apontaram. Parece que não tem como errar, parece certo e que a felicidade estará ali como um pote atrás do arco íris. Só que, infelizmente, nem sempre as coisas acontecem dessa forma.
E nos sentimos infelizes com as escolhas profissionais tão certas ou o relacionamento perfeito. Às vezes, a gente precisa sair da linha, experimentar além da receita, ter a capacidade de olhar novas possibilidades além daquilo que se apresenta na nossa frente. Eu tento fazer isso o tempo todo. Há momentos em que erro feio. Em outros, acerto em cheio. E como em uma receita recém descoberta, me delicio cheia de orgulho de mim mesma por ter, ao menos, tentado.
Ana Holanda é diretora de conteúdo da Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.
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