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Preciso ser vegetariano para ser saudável?
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Neste artigo:

Para muitas pessoas, Ayurveda é sinônimo de “ser vegetariano” – mas será que essa percepção é verdadeira?

Frequentemente recebo perguntas de pessoas que percebem o Ayurveda como uma prática alimentar vegetariana. A verdade é que o Ayurveda é muito mais do que um conjunto de regras alimentares, e as lições deixadas pelos escritos ayurvédicos, os Samhitas, passam por todas as esferas da vida humana, incluindo a alimentação, a ética e a moral.

O Ayurveda é uma ciência que simplesmente aponta o fato de que exercer o seu livre-arbítrio significa arcar com as consequências dele. Cada um pode fazer o que quiser, contanto que tenha consciência do que cada ação significa para o seu corpo e para a sua sociedade. A tomada dessa consciência depende da manutenção de uma mente aberta e constantemente questionadora.

Mito: o Ayurveda não recomenda o consumo de carne

Nos textos ayurvédicos, não existem comidas “boas” ou “ruins”, porque todo alimento no Ayurveda é estudado para entender o seu papel dentro do nosso corpo. O espírito científico do Ayurveda é tão forte que tudo foi testado e descrito ao longo os Samhitas: desde carne de boi, de porco, de frango, até carne de caça, de elefante, sêmen de crocodilo e outras coisas inusitadas. Sendo assim, nos textos ayurvédicos existem considerações sobre carnes diversas, com suas recomendações e contra indicações, tanto para consumo cotidiano quanto para o tratamento de doenças.

Mas não como você imagina…

Então porque o Ayurveda chega para a maioria de nós com cara de vegetarianismo? O primeiro motivo tem raiz histórico-cultural: hoje, a Índia é um país de predominância hinduísta. No hinduísmo não se consome a carne bovina e muito do Ayurveda acaba sendo conhecido com as influências culturais dos seus praticantes lá da Índia.

O segundo motivo é que os escritos do Ayurveda narram de forma praticamente imparcial o efeito do consumo de alimentos de origem animal, mas, se você prestar atenção nas sugestões do dinacharya – a rotina diária, que foi o tema do nosso artigo da semana passada – metade do conteúdo fala sobre práticas éticas e morais de respeito não apenas aos seres humanos, mas a todos os seres vivos, do menor até o maior. Ou seja, a maneira como lidamos hoje com outros seres vivos, e como consumimos alimentos de origem animal produzidos pela indústria, não condizem com esse respeito e essa compaixão que os Samhitas sugerem.

Além disso, dentro dos textos ayurvédicos, as carnes mais recomendadas são as carnes de caça, carnes selvagens, que hoje em dia são pouco consumidas. As carnes domesticadas, que consumimos em escala industrial, estão bem distantes do que é recomendado. E mais complexo do que isso, existe o fato de que os Samhitas categorizam os animais e pontuam que um animal alimentado fora das suas condições normais se torna impróprio para o consumo. Por exemplo, o alimento natural da vaca, que é um animal ruminante, seria grama. Quando uma vaca é alimentada de ração, isso a tornaria, na visão ayurvédica, imprópria para o consumo humano.

A liberdade de lidar com as consequências dos nossos atos

Vou contar uma história rapidinho: quando cheguei à Índia para fazer faculdade de medicina, eu era ovo-lacto-vegetariano e tentei seguir as recomendações do Ayurveda a respeito do consumo de leite. Não vou me estender aqui sobre o leite, pois isso daria um livro inteiro, mas entre as diversas recomendações, está a seguinte: a gente deve apenas consumir leite que foi tirado da vaca naquele mesmo dia e logo em seguida foi fervido. Encontrei um fornecedor que vinha de moto todos os dias me trazer leite fresco, e de vez em quando ele dizia “cuidado com o leite hoje, pois a vaca estava gripada essa noite”. E olha só que curioso: quando eu fervia o leite, em alguns minutos o líquido fresco era substituído por placas talhadas, emanando um cheiro terrível que dominava minha casa inteira.

Eu ficava perplexo. Como é possível que a saúde da vaca pudesse afetar a qualidade do leite? E como é possível que o pessoal do Ayurveda já sabia disso há milênios? Se o leite da vaca gripada fica ruim, como eu sei que no leite que eu compraria no mercado não tinha misturado um pouco de leite talhado?

Minha pesquisa sobre os efeitos do tratamento dos animais na qualidade dos produtos de origem animal se aprofundou de tal maneira que acabei concluindo que seria melhor abandonar esse tipo de produto e tornar-me vegetariano estrito. E digo a você o que sempre falo aos meus pacientes: não tem problema você continuar comendo carne, contanto que isso seja feito com consciência. Segundo o IBGE, são quase 6 milhões de animais abatidos no Brasil todos os anos, e é de conhecimento comum que o consumo de produtos de origem animal é a maior causa de desmatamento da Amazônia.

Você precisa lidar com as consequências: pode se importar com a Amazônia e parar de comer carne, ou não se importar, porque acha que a vida é assim mesmo e continuar comendo o que quiser. As duas opções são válidas – mas não dá para dizer que se importa com o desmatamento na floresta e consumir produtos de origem animal mesmo assim. É uma questão de coerência. E nisso entram os ovos e o leite, que são derivados de tortura animal em grande parte das vezes. Não digo em todas as vezes, porque, em geral, as pessoas que vivem no campo possuem uma outra relação com esses elementos – inclusive uma relação mais parecida com o que o Ayurveda defende tradicionalmente. A questão é que tudo o que nós fazemos afeta as pessoas, os animais e o meio ambiente. Todas as minhas escolhas possuem consequências, ou seja, você tem um papel que elege desempenhar no mundo.

Ser vegano não é necessariamente ser saudável

Veganismo e saúde já foram conceitos afins, mas essa não é mais a realidade. Especialmente agora, que temos muitos alimentos ultraprocessados com o selo de vegano – que pelo menos traz o benefício de não maltratar outros seres enquanto você se alimenta, embora isso não me pareça suficiente.

Nossa sociedade tem uma cultura forte de valorizar as “proteínas”. No sentido comumente aplicado, essa palavra é usada para alimentos de origem animal, embora o reino vegetal seja repleto de opções ricas em proteína, como as leguminosas, por exemplo. Parece haver uma percepção muito difundida que se você não consumir a quantidade “obrigatória” de proteínas por dia, vai sofrer fraqueza, ficar doente, ou pior. A verdade é que se você consumir alimentos variados e privilegiar alimentos in natura ou minimamente processados (nas palavras do Guia Alimentar Para a População Brasileira), ao nutrir seu corpo com calorias suficientes, você acaba tendo um equilíbrio proteico adequado. Uma dieta desequilibrada, seja vegana ou carnívora, não sustenta devidamente uma pessoa saudável.

O Ayurveda argumenta que devemos variar nossa dieta de acordo com a hora do dia, as estações do ano e nossas particularidades físicas. Comendo uma grande variedade de vegetais, principalmente de acordo com o que está disponível na estação, não apenas ajudamos o meio-ambiente, mas nos ajudamos imensamente. Se você já simpatiza com o Ayurveda, sugiro que, para começar, você mude a pergunta: em vez de questionar o que excluir da sua alimentação, estude o que pode ser incluído. Quando incluímos alimentos que nos dão energia e ajudam o nosso corpo, naturalmente começamos a regular nosso consumo – o prato e a vida ficam mais coloridos, experimente!

FONTE IBGE:

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27167-em-2019-cresce-o-abate-de-bovinos-suinos-e-frangos


Sou Matheus Macêdo, primeiro brasileiro a se formar em medicina na Índia com especialidade em Ayurveda no curso chamado BAMS (Bachelor in Ayurveda, Medicine and Surgery). Vivi na Índia quase 7 anos e de lá tive a honra de criar o Vida Veda, um empresa social dedicada a divulgar o conhecimento ayurvédico em língua portuguesa.

Nasci no Rio de Janeiro e hoje moro em Guimarães, Portugal, e percorro o mundo dando palestras sobre Ayurveda e medicina integrativa.

Muito obrigado pela leitura e até a próxima semana!

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