O riso pode curar: conheça os “Doutores da Alegria”
Para diminuir a ansiedade e o desconforto de muitas pessoas nos hospitais, a Doutores da Alegria, uma iniciativa sem fins lucrativos, busca levar bom humor para os pacientes.
Há lugares onde adoramos permanecer sem que a hora passe, como um belo jardim ou a casa de alguém que amamos. Em outros, contamos cada segundo ansiosos para sairmos dali. Se você já precisou passar no hospital uma estadia mais longa, deve ter experimentado esse sentimento.
As desordens de saúde nos geram preocupação, ansiedade, familiares e amigos aguardando notícias e, por vezes, uma angústia que chega para nos visitar quando pensamos nos próximos passos. Tentar se divertir nesse momento pode parecer uma tarefa impossível, mas é justamente essa a proposta da Doutores da Alegria, uma ONG que leva o riso até às pessoas.
Rir é o melhor remédio
Imaginem a cena, palhaços artistas fantasiados vão até hospitais durante a década de 1990 para despertar o riso e trazer um pouco de diversão às crianças em internação. Talvez tudo isso tenha sido muito inusitado no começo, mas rendeu bons frutos, resultados significativos e inspirações para que grupos do país inteiro replicassem a ideia. Apesar da Doutores da Alegria estar focada em apenas três capitais do país, a escolha foi justamente por compreender que em outras cidades essa necessidade já estava sendo preenchida por inúmeras iniciativas.
“Pensamos que no lugar de ‘disputarmos espaço’ nas suas regiões, Doutores da Alegria deveria disseminar conhecimentos e propiciar a criação de uma rede de relacionamento com estes grupos oferecendo, gratuitamente, cursos de formação e um ambiente de troca de experiências”, explica Luis Vieira da Rocha, membro da direção executiva da ONG.
E engana-se quem pensa que uma equipe hospitalar é formada apenas por médicos e enfermeiras, isso porque há fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos e uma série de outras especialidades.
Na saúde mental, o objetivo é possibilitar com que as emoções e as angústias sejam melhor processadas pelos pacientes, tarefa que ganha o auxílio dos Doutores da Alegria, que buscam despertar boas risadas nos pacientes.
Um estudo publicado na revista científica News Ideia in Psychology mostrou, a partir de uma revisão de 100 artigos publicados sobre o riso nos últimos 10 anos em inglês, que o ato de rir pode ter sido preservado pela espécie humana durante a seleção natural. Rimos por diversos motivos, desde uma situação cômica até um senso de coletividade, por exemplo, quando algo ameaçador não existe mais e o riso sinaliza o fim do medo.
Palhaços nos corredores hospitalares
Dar boas risadas traz benefícios tão importantes para a nossa saúde que palhaços começaram a integrar oficialmente a equipe de muitos hospitais do país. “Nunca foi nossa intenção fazer uma atividade terapêutica ou esperar um resultado de cura. Doutores da Alegria acredita que a arte é um direito e deve ser acessível a todos os brasileiros“, explica Luis Vieira Rocha.
A atividade deu tão certo que a Doutores da Alegria foi reconhecida nos anos de 2009 e 2010 com o Prêmio Cultura e Saúde, iniciativa conjunta dos Ministérios da Saúde e Cultura pelas práticas da ONG nos ambientes hospitalares. A organização percebeu a importância dos palhaços não só nos pacientes, mas também nos profissionais, que mudaram suas práticas e formas de atuação, com propostas mais humanizadas, embora essa nem sempre seja a única opção de levar mais alegria às pessoas.
“Tornar a presença do palhaço universal em todos os hospitais brasileiros, como em uma política pública, talvez não seja a melhor ideia. Cada hospital está inserido num contexto sociocultural e o que mais importa é o olhar da gestão hospitalar e daquela sociedade sobre recursos artísticos disponíveis naquela localidade que poderiam somar no ambiente hospitalar”, defende Luis.
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Uma artista-palhaça
O ano era 1991 e Vera Abbud estreava a peça “Uma Rapsódia de Personagens Extravagantes” no Teatro Itália, em São Paulo. Ao fim do espetáculo, Wellington Nogueira (fundador da Doutores da Alegria) procura a atriz e a convida para um teste de uma iniciativa que o palhaço estava tentando implementar no país. Aprovada na seleção, Vera inicia em 1992 e passa a fazer parte de um pequeno grupo que levava alegria aos hospitais. “Não tinha ideia de como era o ambiente hospitalar ou de como seria o trabalho. Doutores da Alegria foi um trabalho pioneiro no Brasil e meu desejo principal era trabalhar com mais frequência a linguagem do palhaço“, explica a artista.
A atriz conta que hospitais e centros de saúde precisam de profissionais capacitados, já que um pequeno erro pode representar um grande problema na vida de um paciente. Assim, os palhaços levam um pouco de leveza com a proposta de reduzir as tensões.
“Esperamos isso de um palhaço: erro, inadequação, fragilidade e, certamente, o riso. É o avesso do que se espera de um bom profissional de saúde“, brinca a atriz.
Hoje, o foco é o atendimento às crianças, embora a ação também impacte pais e os profissionais que acompanham os pacientes.
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Vivências compartilhadas
E é claro que os palhaços não ficam imunes ao que se passa na vida das pessoas que estão nos hospitais. Eles também se emocionam, se envolvem com os pacientes e criam uma relação de proximidade, ainda mais nos casos de internação longa, como pacientes em tratamento de câncer, por exemplo. “Nós trabalhamos em dupla sempre. É com o nosso parceiro que podemos dividir de forma mais efetiva os percalços que inevitavelmente vamos passar em algum momento“, explica Vera.
Há também encontros de partilha, momentos em que os palhaços compartilham suas vivências, o que deu origem a um espetáculo, o “Conta Causos”, no qual as histórias vividas são divididas com a plateia.
“É também uma forma de elaborar todos os sentimentos que por vezes se embaralham na gente. A arte está a serviço do coração“, defende a artista.
Em um desses episódios, Vera conta que um momento marcante for acompanhar uma criança diagnosticada com câncer durante um procedimento pré-operatório:
Em um dos hospitais, o Itaci, havia um procedimento muito doloroso. Passamos em frente à sala onde uma criança ia fazer esse procedimento. Já conhecíamos o médico que ia atendê-la. Fomos falar com o doutor:
– Não vai ter jeito de não fazer, né, doutor?
– Não, bora fazer?
O médico pegou um de nós no lugar da criança e nós protestamos, seguramos a parede, pedimos socorro para não ir. A criança gargalhava ao ver outra pessoa passando, por engano, pelo que ela ia passar. Não estava mais sozinha, um palhaço foi pego em seu lugar! O mundo se igualou na dor. Quanto maior o escândalo, medo, choro e covardia dos palhaços, mais a criança ria. O médico fechou a porta e um monte de barulho estranho saía de dentro da sala, feitos pelos palhaços e médico. Quando saímos, destroçados da sala de procedimento, enaltecemos a coragem da criança. Ela entrou na sala rindo, orgulhosa, se achando muito mais corajosa que os palhaços.
Uma iniciativa que inspira
A iniciativa da Doutores da Alegria é importante para o estímulo a um atendimento humanizado e, por isso, a ONG busca sempre ampliar o grupo; Hoje conta com 26 palhaços, que juntos frequentam os hospitais em duplas. “Antes de atuar com uma dupla fixa no hospital, observam o trabalho de outros palhaços e integram outras duplas, numa espécie de treinamento para aquele novo ambiente, que é diferente do palco, da rua ou do circo“, conta Ronaldo Aguiar, que faz parte da direção artística da organização.
Durante a pandemia, com a impossibilidade das visitas, o grupo logo se organizou para atuar de forma online com o “Delivery Besteirológico”, uma iniciativa que reunia vídeos curtos com inúmeros temas do cotidiano, o que rendeu até uma websérie de São João, o Festival Miolo Mole. “Foi uma experiência marcante e difícil, mas ao mesmo tempo inspiradora para todos que realizam esse trabalho. Contamos tudo no documentário ‘O Ano em Que a Terra Parou’”, explica Ronaldo.
“Fazer parte da Doutores da Alegria é estar na primeira instituição que sistematizou a arte do palhaço no hospital e uma das mais importantes no mundo nesse setor”, defende o diretor artístico.
“Quando cito a palavra bem, quero mergulhar na sua essência, que é proporcionar para o outro uma experiência potente, de bem-estar. É criar um espaço seguro de confiança para todos que procuram a instituição“, conclui.
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