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O bem que a gratidão nos traz
Aaron Burden
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Todos os sábados, Lélia Almeida pega seu rosário de contas de madrepérola e uma garrafa de água para receber alguns passes de médiuns, em um pequeno salão nos arredores de Brasília. Diz ela que foi levada ali pelos anjos, ou por suas amigas, que viram seu desespero diante da doença do filho. Naquele lugar protegido por amplos céus rosados e ao lado de gente muito simples, Lélia, criada em meio aos livros, se despe de todo o seu brilho para abrir o coração para outra mãe, a de Cristo, e lhe pedir a cura. 

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Atendida nas suas preces, e com o filho já forte, sua peregrinação semanal não cessou. Ali, junto de trabalhadores e donas de casa de Ceilândia, ela continua a praticar sua devoção. “Outro dia, a Diva, a do filho craqueiro, me perguntou: ‘o seu filho já não melhorou, o que você faz aqui então?’, e eu disse a ela que venho para agradecer, para não esquecer que a gratidão é uma boa prática, para não esquecer que podemos sobreviver com muito pouco, um rosário pequeno de contas de madrepérola e muita água.” E acrescenta logo em seguida, quase que falando para si mesma: “e para lembrar toda semana que eu tenho tudo.”

Li esse trecho no blog da própria Lélia, uma sensível escritora gaúcha. Seu texto passou pelos meus olhos, assim como tantas histórias, posts do Facebook, palestras e artigos publicados sobre o assunto. Nunca pensei que esse sentimento pudesse ser tão popular, e ações que o expressem, tão comuns. O que acontece é que, muitas vezes, passamos por cima desses relatos justamente por serem rotineiros. Porém, se prestarmos atenção na quantidade de agradecimentos que surgem por aí, vamos descobrir com espanto quantas manifestações de amor se ocultam no meio de outros acontecimentos.

Por que praticamos a gratidão?

Mas, afinal, o que é gratidão? É um encantamento, um rendimento diante da beleza e do mistério da vida. Alguém, ou algo, lhe toca e você se torna um maravilhado. O peito se enche de alegria. A alma resplandece. Ou, silenciosamente, é tomada pela ternura. Um presente foi ofertado pela existência e você se inclina em agradecimento, em estado de graça. Não é por acaso que as palavras graça e agradecer têm a mesma raiz.

No entanto, é necessário nos tornarmos sensíveis e atentos para perceber como a vida oferece dádivas sem nos darmos conta. É preciso parar e olhar em volta, com foco. Respirar fundo, deter-se no meio da correria. Escutar o poeta e místico indiano Kabir quando ele chama nossa atenção: “E para onde você vai com tanta pressa antes da morte? Você consegue encontrar o que tem valor nesse mundo?” 

Pois é, a gratidão nos ajuda nesse encontro do que, de fato, tem valor nessa vida. E a reconhecer a valia do que damos por garantido e perene – sem perceber que aquilo é precioso e pode escorrer a qualquer momento pelos dedos. Também nos ensina a agradecer pelo que nos toca, ou por quem nos dá uma mão. Não é nada difícil, mas é fundamental para nos sentirmos mais felizes. E, ao que parece, algumas pessoas já estão se conscientizando disso. 

Agradecer é essencial para uma vida com propósito

Só para dar uma ideia, em poucas horas diante do computador, acompanhei e li dezenas de histórias ou textos que, no fundo, falavam dos mais diversos tipos de agradecimento. Numa emocionante palestra do TEDx de São Francisco, na Califórnia, por exemplo, o monge beneditino David Steindl-Rast fala em como a gratidão pode se transformar no caminho mais rápido e direto para a felicidade.

Também me interessei pelo trabalho feito por grupos brasileiros de Naikan, arte japonesa da autorreflexão. Nos retiros organizados por eles, é possível reencontrar o sentimento de apreciação e reverência pela existência. Li, ainda, um artigo da neurocientista Suzana Herculano-Houzel no qual ela comenta sobre pesquisas recentes que mostram como a gratidão ativa o mecanismo de recompensa no cérebro, e provoca uma profunda sensação de bem-estar e alegria.

Mas, afinal, por que, de repente, nos tornamos agradecidos? “O ser naturalmente grato encontra beleza e encantamento em tudo o que acontece, não importa muito o quê. Geralmente tem uma atenção apurada e uma sensibilidade à cor da pele, pois percebe detalhes inimagináveis pelos quais reconhece que ganhou algo raro e precioso da existência”, explica a psicóloga Ângela Maria Ferrari Collo, especializada em terapia familiar.

“Por isso, é comum essa pessoa querer retribuir essas dádivas, e doar algo de si como forma de demonstrar seu reconhecimento. Esse alguém se sente próspero pelas inúmeras bênçãos que recebe todos os dias. Por consequência, torna-se mais generoso e aberto com os outros”, diz. E certamente mais feliz. 

É bem provável que essa pessoa também se torne menos egoísta, crítica, carente, amarga ou mesmo agressiva. E deixe de ser uma eterna insatisfeita para se mostrar mais receptiva com o que a vida lhe oferece. “Quando se inclina a cabeça por aquilo que nos chega de bom, quando manifestamos apreço a alguém que nos dá alguma coisa, ou nos encantamos com a natureza, fazemos um bem enorme para nossa psique: nos tornamos apreciadores genuínos da vida em todos seus aspectos”, afirma a psicóloga. Saboreamos seu verdadeiro gosto, não mais a engolimos sem sentir ou pensar.

Também não a criticamos tanto por nos oferecer pratos com os quais não estamos acostumados. “Seja grato a quem o faz voltar, seja qual o motivo, para o espírito”, nos sussurra o poeta persa do século 13 Mevlana Muhammad Rumi. Às vezes, esse retorno ao coração é feito com delicadeza, e, outras, com muita dor. Nesse último caso, vamos estar diante do paradoxo que é agradecer até mesmo a quem nos causa sofrimento, por nos fazer voltar ao que é real. 

Mas, se dizer obrigado é uma das grandes chaves para se sentir mais feliz, por que algumas pessoas têm mais dificuldade em despertar a gratidão? Será que é possível aprender isso sem forçar nossa natureza?

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Como nasce o apreço

Muitas teorias falam de como se origina o sentimento da gratidão. Uma das mais interessantes foi formulada pelo pensador austríaco Rudolf Steiner, criador da antroposofia. Steiner dividia a existência em períodos de sete anos, os setênios, cada qual com uma lição específica para ser aprendida.

Nos primeiros sete, por exemplo, aprenderíamos o que é bom; nos subsequentes, dos 7 aos 14, o que é belo e, dos 14 aos 21, o que é verdadeiro. “Nos primeiros anos, quando se descobre o que é bom e outros valores positivos, é fundamental que a criança desenvolva um amor intenso, quase uma veneração, por alguém que é bondoso para ela: geralmente a mãe, mas também pode ser o pai, ou outra pessoa próxima que tenha muita importância no seu mundo afetivo”, diz Esther Teixeira-Jossi, professora formada na pedagogia Waldorf, criada por Steiner.

“Ao amar profundamente essa pessoa, e ao reconhecer que recebe boas coisas dela, o sentimento da gratidão é despertado naturalmente pela primeira vez”, afirma. 

A maioria dessas teorias, como as da psicanalista austríaca Melanie Klein no seu livro Inveja e Gratidão, por exemplo, coloca o nascimento desse sentir em idades muito tenras. “A gratidão surge na infância quando se tem carência de alguma coisa importante, e essa falta é preenchida inesperadamente por alguém”, assegura a escritora Helena Gerenstadt, que tem o costume de agradecer àquilo que recebe desde muito cedo.

“Filha de pais separados, lembro como me sentia feliz e grata quando era convidada, pela mãe de uma amiguinha, a passar o final de semana com a família dela”, conta. Para Helena, a carência pode se transformar em uma grande professora da gratidão.

“As crianças que têm quase tudo nunca conseguem se satisfazer, viram um buraco sem fundo. Qualquer satisfação se mostra insuficiente e transitória, pois sua carência básica, que é de amor, não é suprida”, diz. De acordo com ela, os mais gratos tendem a ser, paradoxalmente, os que mais experimentaram dificuldades e obstáculos.

Dessa forma, esse não é um sentimento para quem só sabe olhar para o próprio umbigo. Mas, se você for assim e quiser ser mais feliz, ainda tem jeito, dá para começar a mudar. Leia até o final. 

O que a ciência diz sobre a gratidão

As modernas pesquisas na área de neurobiologia também alicerçam teorias surpreendentes sobre esse tema. Para isso, podem ganhar parceiros inesperados, como um filósofo holandês do século 15, conhecido como Spinoza. “O pensamento dele tem muitos pontos em comum com os resultados de estudos atuais”, afirma Marcello Árias Danucalov, médico, neurobiólogo e estudioso do pensamento do filósofo.

Para Spinoza, somos controlados pelas emoções, que ele chamava de “afetos” – alegres ou tristes. “De acordo com ele, a razão só surgiria depois da manifestação das emoções, para justificá-las”, diz Danucalov. Segundo o pensador holandês, o ser humano não consegue se libertar do domínio das emoções. Mas ele pode escolher desenvolver ou estimular aquelas que são mais positivas (afetos alegres), em detrimento das mais negativas (afetos tristes).

E afirmava, também, que as emoções negativas retiram todo o nosso entusiasmo pela vida, e nos tornam sem vigor. Já as alegres, como a gratidão e o amor, estimulam nossa existência, e contribuem para a manifestação do brilho interior. 

O que Spinoza propunha há quase 400 anos coincide com as conclusões da neurobiologia atual. “As emoções positivas, como a gratidão, liberam substâncias no organismo que produzem sensação de bem-estar e leveza. Já as geradas pelas emoções negativas podem ocasionar sérios danos ao corpo se estiverem presentes na circulação por muito tempo”, afirma o neurobiólogo.

“É a única escolha real que temos: saber as emoções que vamos estimular na nossa vida, já que, como dizia Spinoza, sempre seremos dominados por elas”, diz o pesquisador. O que ajuda nesse processo? Técnicas de meditação, ioga, tai chi, o contato com a natureza, o convívio com gente positiva e a doação voluntária do seu tempo para uma instituição. E também rezar para agradecer – e não apenas para pedir. 

Isso não quer dizer que daqui para frente é proibido ter raiva ou ficar triste. Essas reações são também necessárias, pois podem mobilizar forças na direção de uma mudança benéfica. Se você percebeu que não conseguiu ser grato diante de tudo de bom que a vida já lhe ofereceu, faça isso agora.

Experimente dar um passo para fora do seu próprio universo. Vai lhe fazer bem ou nos livrar de situações aflitivas e de riscos. Só não esqueça que elas são prejudiciais a longo prazo. “A resposta mais sábia diante da vida é não apenas aceitar o mundo como ele é, mas contribuir para fazê-lo um lugar mais aprazível”, conclui Marcello Danucalov. 

Três perguntas de ouro

Mas como é possível saber se somos realmente gratos pelo que recebemos? Antonio Carlos Valença, professor e pós-doutor em ciência da ação e aprendizagem organizacional, dá uma indicação. “Quem é grato é humilde, alegre, generoso, e se considera igualitário aos seus semelhantes“, diz ele. Já o ingrato… “Ele não reconhece o outro, se sente superior. Sua felicidade é retentiva, egoísta”, avalia. Pior: ele pode não estar consciente de sua própria ingratidão. Isto é, muitas vezes ele não sabe que é assim. É como alguém que tem pressão alta e não percebe, porque não há sintomas aparentes. Mas como avaliar, então, se somos ou não gratos?

Para facilitar, deixo três perguntas feitas nos retiros de Naikan, a tal arte da autorreflexão. É um tipo de contabilidade interna, que pode ser aplicada para qualquer pessoa ou circunstância. A primeira é: o que eu dei? A segunda: o que recebi? E a terceira: que problemas causei?

Ao respondê-las, você poderá avaliar se é alguém agradecido ou não. E, se descobrir que não soube ser grato diante de tudo que já lhe foi ofertado, faça isso agora. Experimente dar um passo para fora do seu próprio universo e manifeste a gratidão já com um pequeno gesto concreto. Ofereça um presente, escreva um bilhete com palavras doces, dê flores, faça preces, ou abrace alguém demoradamente. Mesmo que ainda não sinta o sentimento de gratidão, agradeça. Um dia, ele se tornará real. É assim, pelo hábito de demonstrar seu apreço, que ele começará a entrar devagarzinho dentro do peito. De uma maneira delicada e sutil.

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