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Como se preocupar menos
Priscilla Du Preez | Unsplash
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Neste artigo:

Ouvir mais a nossa voz interior, aprender a dar a real proporção aos nossos dilemas do dia a dia e não se cobrar tanto é essencial para não se preocupar tanto e ter uma vida com mais propósito e presença

Após 12 horas de parto, eu tinha um bebê de quase 4 quilos em meus braços, ainda sem nome e que mamava em paz. Por que havia um tormento dentro de mim, se tudo isso era a realização de um desejo e corria bem? A verdade, confesso, é que eu mal virei mãe e já estava envergonhada: todas as mulheres cujas palavras li e ouvi durante a gestação me disseram que bastava o meu filho nascer para sentir pulsar o maior amor do mundo, o tão esperado amor incondicional.

E eu, apesar dessa dádiva de gordura quentinha nos braços, só sentia meu corpo leve, satisfeito por “apenas cumprir a missão”. “Onde estão as lágrimas de amor rolando no meu rosto? Será que eu não consigo amar meu próprio filho?” — isto é, obedecer à regra de que há um instante exato para amar incondicionalmente seu filho recém-nascido? Quanto mais me prendia a essa “obrigação”, mais me culpava, mais me preocupava. E voltei para casa com um bebê no colo em busca de um conselho que acelerasse o processo de amar. O conselho veio, e quem deu foi o Ian, meu marido, quando me disse que eu não precisava ir contra a realidade; e que essa realidade, aliás, não era falta de amor, mas a expectativa que eu tanto alimentava.

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Olhando para trás, percebo o quanto deixei de escutar o que a vida me dizia (nessa fase tão linda que é a maternidade) para ficar me punindo por estar fora da curva, e não na média conforme a estatística que eu mesma estabelecia.

O escritor e filósofo francês Fabrice Midal fala justamente sobre essas cobranças que nos impomos em um dos capítulos de sua obra A Arte Francesa de Mandar Tudo à Merda— Chega de Bobagens e Viva a Sua Vida (Planeta). Ao relatar a preocupação de uma amiga recém-viúva por não conseguir viver seu luto, ele conta que quanto mais ela se agarrava à ideia dessa obrigação e mais freneticamente procurava transpor essa etapa, menos tinha sucesso. “Ela queria a indicação de algum exercício, um livro para ler, uma ação para executar — e ter a impressão de estar fazendo algo para sair daquela situação. Sem dúvida surpreendi-a respondendo que ela devia se permitir viver aquele luto”, diz ele.

Por que brigamos tanto contra a realidade? Vamos perder sempre! Eu, em busca de um amor incondicional instantâneo, e ela, em busca de um luto obrigatório. Ao sermos acolhidas pelo marido ou pelo amigo, respectivamente, passamos a nos cobrar menos, a respeitar o nosso próprio tempo e a nos permitir viver minuto após minuto cada pedaço do nosso caminho. Ela, ao lado da sua saudade. E eu, ao lado do meu pequeno Theo, quando finalmente vi o amor nascer. Naturalmente nascer.

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Devorados pela urgência de “fazer”, nos tornamos prisioneiros de um ativismo frenético que nos deixa completamente cegos. E, como estamos o tempo todo em movimento, vamos esquecendo o essencial, deixando de aproveitar plenamente nossa vida


O que o mundo espera de nós?

Em tempos de respostas imediatas e de estímulos que nos bombardeiam a todo instante, é preciso cuidar para não confundir nossa mente e coração com falsas demandas geradas por cobranças externas (e internas). Isso porque muitas vezes nos enganamos ao colocarmos nossos esforços e pensamentos naquilo que acreditamos ser o que o mundo espera de nós, e não nas nossas reais necessidades e vontades.

“Passamos o dia todo nos torturando ao assimilar normas, ordens e modelos que não correspondem ao que somos. Nos torturamos porque queremos ‘fazer melhor’ e julgamos nunca ‘fazer direito’. Por sua vez, estamos convencidos de que os outros sabem ‘fazer direito’. E nos punimos, geralmente, sem que exijam nada de nós”, detalha o filósofo.

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O problema, segundo ele, é que, devorados pela urgência de “fazer”, nos tornamos prisioneiros de um ativismo frenético que nos torna cegos. Como estamos o tempo todo em movimento, cuidando dos compromissos cada vez mais frequentes e das expectativas cada vez mais altas, vamos esquecendo o essencial e deixando de aproveitar plenamente nossa vida. “É claro que temos que nos preocupar com nossas tarefas do dia a dia, ou ficaríamos entediados, mas a realidade vai muito além disso! E as nossas emoções, sensações, memórias? E quanto às cores, sons e diferentes tons de luz ao nosso redor? E as pessoas com quem convivemos, as energias que elas transmitem e os lugares em que vivemos? Há um mundo inteiro ao qual não estamos prestando atenção”, alerta Fabrice.

Quando deixamos tudo isso de lado, algumas questões importantes dentro de nós ou ao nosso redor podem permanecer mascaradas por muito tempo. E é aí que mora o perigo. Neste mundo acirrado das curtidas, onde a aprovação é mais importante que a opinião, e os protocolos, mais respeitados que as pessoas, não raro caímos na banalização dos afetos e nas armadilhas do culto ao corpo, da exposição ao consumismo e da idealização de sucesso e felicidade.

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“Tudo isso é superficial, pois, lá no fundo, há um medo gigantesco de nos olharmos no espelho”, acredita o filósofo, se referindo ao olhar mais relevante e profundo de todos: aquele para dentro de nós. E, não, você não precisa fugir para o topo de uma montanha para fazer isso. Apenas fique onde está e pare de raciocinar. Olhe para você com mais gentileza, sem se prender à necessidade de separar e de categorizar tudo. “Há um momento em que devemos unificar um pouco nossa vida. E reconhecer a sorte por termos um caminho para nos encontrarmos e crescermos. Isso não é maravilhoso?”, questiona Fabrice Midal, nos trazendo coragem para nos libertar da pressão desnecessária e das pseudourgências que nós mesmos nos impomos; e nos fazendo sentir o entusiasmo e a vontade de ir longe e renascer dentro da gente mesmo. O recado é claro: “Apenas pare! Esse é o único meio de agir”, brinca o filósofo, falando sério. Porque, diante de tanta dor e desumanidade, o que o mundo quer mesmo é a nossa bondade.

Mais alegria e disposição

Quem não quer encontrar uma razão para acordar todas as manhãs com disposição e alegria, aconteça o que acontecer? Segundo os japoneses de Okinawa, a ilha com maior índice de centenários do mundo, existe um conceito que os ajuda a levar a vida sem perturbações e repleta de sentido: o ikigai. Essa palavra misteriosa, que une os termos “vida” e “valer a pena”, é tema do livro Ikigai — Os Segredos dos Japoneses para uma Vida Longa e Feliz (Intrínseca), de Hécto García e Francesc Miralles, dois amigos espanhóis que resolveram conhecer de perto o terreno de um povoado tão longevo e feliz.

“Não deixava de nos surpreender que esse remanso de vida quase eterna, cujo povoado ria e fazia piadas o tempo todo em meio às encostas verdes regadas por água pura, se encontrasse justamente onde mais de 200 mil inocentes perderam a vida na Segunda Guerra Mundial”, descreve a dupla. Em vez de guardar rancor dos invasores, os okinawanos recorrem ao ichariba chode, uma expressão local que pode ser traduzida como “trate a todos como seus irmãos, ainda que seja a primeira vez que os esteja vendo”.

Aproveitamos muito pouco o presente perdendo tempo idealizando um futuro baseado em fantasia ou rememorando o passado que “poderia ter sido diferente”. E esquecemos que a plenitude só é verdadeira aqui e agora, na única realidade que existe

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É que um dos segredos dos habitantes é a sensação de pertencimento à comunidade. Desde pequenos trabalham em equipe, o que os ensina a ajudar uns aos outros, reconstruindo, cultivando e celebrando cada novo dia, em qualquer circunstância. Para enfrentar os contratempos, nunca se rendem: praticam a resiliência. “O resiliente sabe se manter concentrado em seus objetivos, com foco no que importa na vida (e não no que é urgente), sem se deixar levar pelo desânimo. A força vem da flexibilidade, de saber se adaptar às mudanças e aos golpes do destino. E concentra-se nas questões sobre as quais tem controle sem se preocupar com aquilo que não pode controlar”, explica.

Ter consciência do que está ou não sob nosso controle, aliás, é uma diretriz importante para quem busca se preocupar menos com as pressões da vida. Como diz a oração do teólogo estadunidense Reinhold Niebuhr, que pede aos céus “serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para mudar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras”. Afinal, não adianta nada nos preocuparmos com coisas que estão fora do nosso controle, como, por exemplo, se passamos ou não na prova de ontem ou se vai ou não chover amanhã.

“Devemos distinguir claramente o que podemos e o que não podemos controlar, para, dessa maneira, aprender a não nos deixarmos levar pelas emoções negativas”, defendem os espanhóis, citando outra frase valiosa, desta vez do filósofo grego Epiteto, um dos principais representantes do estoicismo, que, assim como o budismo, busca reduzir nosso ego e controlar pensamentos negativos. “O que perturba a mente dos homens não são os fatos, mas os julgamentos que fazemos sobre eles.” É como na velha história do copo meio cheio ou meio vazio conforme o olho de quem vê. Nesse caso, cada dilema que surge ao longo da vida pode ser considerado uma desgraça ou uma experiência. Você decide.

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Focar no presente é vital

Outra sugestão para despressurizar a mente  é saber em que tempo viver. Tanto o budismo quanto o estoicismo de Epiteto nos lembram de que a única coisa que existe e que está sob nosso controle é o presente. E a explicação dos mestres é simples: porque o tempo em que a vida transcorre é o presente, não há outro. Por isso, o melhor é viver cada momento com o máximo de atenção ao que estamos fazendo. Isso vale tanto para um dia de sol na praia quanto para um dia atolado de trabalho.

“As preocupações aparecem quando não estamos presentes aqui e agora, quando fazemos uma coisa e pensamos em outra ou ficamos ansiosos com o futuro e presos ao passado. O desgaste físico e mental vem daí”, explica Monja Coen, fundadora da comunidade Zendo Brasil, em São Paulo.

Para quem se pergunta se vale mesmo a pena viver só no presente, sem a nostalgia de ontem ou sem planejar o amanhã, ela diz que, embora a gente esteja no aqui e agora, somos feitos de passado e futuro. Mas deixa claro o que pensa nas páginas do seu livro Zenpara Distraídos — Princípios para Viver Melhor no Mundo Moderno (Planeta), escrito com Nilo Cruz. “A vida é a soma de todas as experiências vividas que nos trazem para este agora. Portanto, não reclamo do passado, pois ele me trouxe até este momento.

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E este momento é o ponto de partida para o próximo. Minha transformação é aqui.” A questão é que aproveitamos muito pouco o presente, perdendo tempo demais idealizando um futuro baseado em fantasia ou rememorando um passado que “poderia ter sido diferente”, e esquecemos que a plenitude só é verdadeira aqui e agora, na única realidade que existe. E, para deixar os momentos chatos mais leves, não tem jeito: é tentar relaxar seja lá onde for. Se está apressado na fila do banco e começa a se irritar, preste atenção em você, no seu corpo, nos sons, nas pessoas, e evite pensar no que tem para fazer depois.

Praticar esse tipo de atitude é, para os zen-budistas, uma forma de meditação. Com o tempo, dá para observar nossos próprios pensamentos sem deixá-los criar um turbilhão de ansiedade. Uma memória de algo doloroso, por exemplo, pode voltar à lembrança, mas, em vez de permitir que ela vire uma bola de neve emocional, faça com que ela siga seu fluxo natural no momento presente. Em último caso, se o tormento persistir, a saída é agir como quiser, mas sem perder a calma. Basta deixar fluir.

Sim, devemos nos preocupar com as tarefas do dia a dia, ou ficaríamos entediados, mas a realidade vai muito além disso. E as nossas emoções e memórias? E as pessoas e lugares ao redor? Há um mundo inteiro ao qual não estamos prestando atenção

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Preocupação ou problema?

Impasses fazem parte da vida e acontecem o tempo todo, desde banalidades como quando perdemos a chave do carro até uma doença que nos tira do prumo. A repercussão disso tudo sobrenós é o ponto exato da questão. Quem nunca entrou em uma tortura sem fim sem nem pensar nas alegrias que tem? Isso é legítimo, claro, mas devemos ir além para nos tornarmos capazes de distinguir problema de preocupação e darmos a proporção real a cada um deles.

“Os problemas estão relacionados à realidade e se resolvem na realidade. Já a preocupação é um processo mental que nos tira o sono e nos consome dia a dia com dilemas a que damos importância excessiva”, diz a psicóloga Mariana Brandão Lourenço Gonçalves. “Não damos conta do quão exaustos ficamos após um dia de pensamento repetitivo que não cessa e, o pior, não nos leva a lugar algum”, afirma ela. Sem falar do dinheiro, algo tão presente quanto preocupante na nossa vida. Diz o filósofo escocês John Armstrong, autor do livro Como se Preocupar Menos com Dinheiro (Objetiva), que precisamos entender o que, de fato, dá sentido à vida para baseá-la em valores que ultrapassem os ganhos materiais, mas sem menosprezar o que preocupa.

“Uma estratégia é dar às preocupações nossos melhores pensa- mentos e atenção. Deveríamos tentar entendê-las melhor, em vez de fingir ignorá-las”, afirma ele. Dessa forma, as vontades que não podem ser realizadas ou os planos em que colocamos altas expectativas (que envolvem ou não dinheiro) não precisariam ser reprimidos, mas transformados ou reorganizados. E tudo bem ter frustração de vez em quando. Para a psicóloga Mariana, isso nos dá mais habilidade para lidarmos com as cobranças externas e internas. “Ou até mesmo para reconhecê-las e dar menos atenção a elas”, diz. Nesse processo, vale também nos questionarmos por que somos tão duros com nós mesmos.

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O que não pode ser realizado não precisa ser reprimido, mas transformado ou reorganizado. E tudo bem vir um pouco de frustração. Isso traz habilidade para lidar com as cobranças externas e internas ou reconhecê-las para dar menos atenção a elas

Basta lembrarmos das vezes que escutamos (ou dissemos) por aí: “Que horror estou nesta foto”, “Eu sou um idiota”, “Ninguém nunca vai gostar de mim”, entre outras frases que nunca deveriam ser ditas por alguém. “É bem cedo que assimilamos o que é certo e errado, bonito e feio. Tudo ligado às emoções e vivências mais importantes da mais tenra idade. Dali para a frente, a maneira como olhamos o mundo já naturalmente passa por um crivo interno, que nos compara com os nossos modelos ideais, define interesses e gera autocobranças”, diz ela.

E, bem, desaprender os mecanismos assimilados na infância não nos parece tarefa fácil nem rápida, mas uma obra a ser construída ao longo da vida, dilema por dilema. No fundo, continuaremos sendo um enigma para nós mesmos, mas, quem sabe, com menos pressão interna, aprenderemos a confiar mais naquilo que sentimos e que somos. Só que bem mais calminhos.

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