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    No último outono, por causa de um trabalho, instalei em meu telefone o aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp. Antes de descobrir as configurações que tinham mais a ver comigo – adotar o status invisível, bloquear notificações sonoras –, caí na vertiginosa profusão de recados, fotos e vídeos vindos não sei de onde. Parecia imperativo estar sempre disponível à conversa. “Calma. É para facilitar a vida…”, disseram. Devagar e divagando, eu ainda me perguntava se aquela relação com o suposto facilitador de comunicação duraria até o inverno. Acho que não é para mim. Parei o carro em um sinal fechado e desejei que Paulinho da Viola surgisse para cantar uma das conversas mais lindas da música brasileira: Olá, como vai?/ Eu vou indo e você, tudo bem?/Tudo bem, eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro, e você?/ Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe?/Quanto tempo…/

    Pois é, quanto tempo… Mas não. O que aconteceu foi que o WhatsApp fez tremer o celular. Aceitei. O mapa do GPS desapareceu e em seu lugar veio uma lista de kkks e hihihis. Nenhum “oi, tudo bem?” ou “pode falar?”. Ninguém bateu palma no meu portão ou, se bateu, a mensagem foi soterrada pelas outras. O sinal abriu e jamais soube onde começaram aqueles gracejos abreviados. Eles falavam comigo, mas não diziam nada. E, ainda pensando em Paulinho da Viola, segui com a melodia: Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas/Eu também tenho algo a dizer, mas me foge a lembrança… 

    Sem GPS, indaguei sobre o meu destino na banca de revista. Era um restaurante e estava logo ali. Mal percebi quando o garçom trouxe a água, porque duas moças na mesa ao lado me intrigavam. O celular de uma delas vivia iluminado e trepidante. “Leia, pode ser importante”, disse a amiga. “Prefiro não, imagine… É o pessoal desse grupo do meu curso, entende? Deixa para lá. Continua…!”, mas ela mal se aguentava e finalmente pediu um tempinho para atender. Pode? Pode. A vida é uma sucessão de acasos, escolhas, prioridades. Essas coisas acontecem. Acontece também, é claro, de a gente se chatear com a ausência de quem está sem estar e de duvidar da disposição do outro para ouvir e falar à moda orgânica, aquela que só existe na entrega e na atenção. Sabemos conversar, chegar no outro? Queremos fazer isso? 

    Mais tarde, em casa, fui fisgada por uma foto que chegou pelo Twitter. É noite e há um grupo de mulheres sentadas em cadeiras de praia, na calçada. A legenda diz “Eis o melhor WhatsApp do mundo”. A imagem me tocou. Distorci sua mensagem para ajustá-la à minha realidade. Não saí correndo para abraçar meus vizinhos do prédio, por que não os conheço, mas desisti do aplicativo. No meu caso, ele liquidava mais do que facilitava. Sua “invasão” perturbava. Também pensei que cada um de nós tem o próprio tipo de “conversa na calçada”. Pode ser à mesa, com água, comida e vinho, tendo ao seu redor pessoas de verdade com as quais podemos ser quem somos – e até usar o celular cuidadosamente, se for importante. 

    Mas, afinal, o que significa saber conversar? Quem consegue fazer isso tem um milhão de amigos e conquista pessoas e sucesso, como sugerem manuais à venda nas livrarias? Estabelece conexões consistentes? Nesse gesto de estar com o outro, qual o papel da presença, da espera – afinal, nem todo mundo está pronto para falar quando desejamos –, da escuta, do silêncio? Pois é. A partir dessas perguntas e outras mais, comecei a trabalhar o texto que você lê agora. Na vitrola, os versos de Aldir Blanc me lembravam (uma outra canção) que “Amigo é pra essas coisas”: Salve!/Como é que vai?/ Amigo, há quanto tempo!/Um ano ou mais/Posso sentar um pouco?/Faça o favor/A vida é um dilema/ Nem sempre vale a pena/O que é que há? 

     

    Uma boa conversa 

    “Acredito que, do ponto de vista da conversa, as pessoas mais interessantes são homens reunidos em um bar, jogando conversa fora para combater a solidão. Também mulheres no sol em torno de seus bebês, falando sobre como foi a semana. A melhor conversa é sem arte, sem cálculo.” Essa opinião, do jornalista e escritor americano Joseph Mitchell (1908-1996), aparece no posfácio de um de seus livros, O Segredo de Joe Gould. Assinado por João Moreira Salles, o texto perfila o homem famoso por saber ouvir não só com os ouvidos, mas também com os olhos. Mitchell é considerado um dos repórteres mais importantes do século 20. Foi um grande observador do lugar incomum. “Para falar a verdade, depois de um tempo comecei a achar que, se tenho algum talento, ele nasce do fato de eu não me chatear com facilidade. Posso ficar ouvindo qualquer pessoa indefinidamente”, disse. Faz sentido, mas parece difícil. Basta pisar na rua (ou na internet) para sentir que todo mundo fala, responsabiliza o outro e se apropria da razão, mas quase ninguém tem paciência. Às vezes é assim até em casa ou entre amigos: sobra pressa, falta espaço. Mas como se cria esse espaço? 

    “Ao conversar, ampliamos os modos de ser e de se entregar ao outro. O importante não é se posicionar, se opor, se impor, nem propor. O importante é a exposição, com tudo o que ela trouxer de vulnerabilidade e risco.” Leio essas anotações em um caderno. A caligrafia é minha, mas as reflexões são de Luiza Helena da Silva Christov, mestre e doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e professora e pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Eu a conheci em um curso de história oral, onde me dei conta de que nunca havia pensado no ponto de interrogação como um anzol. É o que é. Procurei Luiza na Unesp, levando meus anzóis. 

    No momento, ela orienta uma tese sobre conversa. Outro dia, com o objetivo de observar o que acontece durante uma “conversa pela conversa”, sua aluna levou uma máquina de escrever ao pátio de um centro cultural bem movimentado. Sentou-se no chão e começou a datilografar. Instigados pela cena, homens e mulheres chegavam perto, faziam perguntas e engatavam um diálogo. A menina anotava à máquina. As pessoas, à vontade, se abriam com ela. No fim, pareciam revigoradas pela experiência incomum – talvez fosse o sentimento de ser autor da própria história. “Mesmo onde parece não existir mais conversa, um gesto ou provocação pode aproximar e conectar”, diz Luiza. E por que estudar esse tema? “Porque quanto mais a gente está na frase curta [o digitar, a vida online], mais deseja a frase longa. As pessoas querem falar e precisamos saber bater papo para viver melhor, para que sociedade, cidade e urbanidade se realizem.” A busca é ambiciosa? Sim, e bastante legítima. “A boa conversa é um acontecimento que atravessa as pessoas, que faz sentido. Não é necessariamente indolor ou alegre. Mas é uma experiência”, pondera a pesquisadora. 

     

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    Tipos de conversa

    Fora aquelas de aprendizado, as tristes e as repletas de contentamento. Bate-papos enfadonhos dos quais não dá para fugir. Diálogos de trabalho, de elevador. Conversas desafiadoras, interlocutores generosos. Discussões que desgastam por nos tirar da zona de conforto, porque há gente maldosa ou porque naquele dia estamos menos do que em outros. Em comum, para dar certo, é um bom começo entrar em cada uma delas prestando atenção. No trajeto, reduzir os Não há um jeito único de falar com o outro. Para cada conversa, superficial ou profunda, existem outras tantas com finalidade definida, bem como as surpreendentes e as imprevisíveis embates. Às vezes nossos medos e fragilidades funcionam como lentes de aumento diante dos problemas: será que vale comprar essa briga ou é melhor deixar para lá? A ver. 

    E se a palavra não é o único mediador, podemos acreditar que a escuta (da voz e dos gestos) é um elemento unificador. Escutar é prestar atenção e se abrir para a vida com curiosidade. Parece óbvio, mas é mais difícil do que ouvir. Exige esforço, treino e entrega. “Só a curiosidade evita que o sujeito se enclausure nele mesmo. Ao dialogar, precisamos abrir espaço para o novo, esvaziando-se de certezas, confiando no que o outro pode trazer”, explica Luiza. 

    Há 20 anos, Carlos Correia escuta. Ele é voluntário na ONG Centro de Valorização da Vida (CVV), uma instituição de apoio emocional. “Em geral, quem liga quer ser acolhido, achar conforto, desabafar. Essa pessoa vai arrumar gavetas e nosso papel é deixá-la encontrar na própria fala as formas de organizar esses espaços”, diz. E o que esses anos de escuta fizeram por você? “Estou mais paciente e tolerante e presto a mesma atenção no que dizem e no que deixam de dizer. Houve uma vez em que a pessoa parou de falar e ficamos muito tempo quietos. De repente, ela disse que não sabia como eu suportava aquele barulho de relógio. Demorei para entender, mas percebi que era um relógio de parede que tenho por perto e que eu jamais havia escutado. Foi uma descoberta. Nós rimos.” 

     

    Sobre silêncios 

    Falar demais (ou de menos). Falar sem parar. Não ouvir. Ouvir apenas, sem fazer perguntas. Dar de ombros. Nada disso dá muito certo, há de se encontrar algum equilíbrio. A escritora americana M. F. K. Fisher (1908-1992), que escrevia sobre comida, tinha 18 anos quando seu tio a convidou para viajar da Califórnia para Chicago. A experiência não era menos do que extraordinária. Um dia, no restaurante do trem, os dois observavam o menu quando o tio perguntou se ela preferia omelete de cogumelos frescos ou de aspargos. “Tanto faz.” Furioso, tio Evans disse a ela, em tom severo, para nunca mais resmungar daquela forma, dando a impressão de que não só a omelete, mas seu anfitrião, eram desimportantes. “Antes de abrir a boca, nem que seja mentira, tome uma decisão e diga o que prefere”, disse ele. Não era mera formalidade, explicou depois, mais calmo. “Um dia, você vai entender que isso tudo tem a ver com autoconhecimento.” Fisher desejou chorar. Mas ficou, respirou, comeu a omelete. E se sentiu mais segura e sabida. Mais tarde, ao relatar o episódio em um de seus textos, ela se mostrou grata àquela conversa que a ensinou a ter mais consideração com o outro. 

    Um homem vivido como uncle Evans concordaria que sempre há nas boas conversas, geralmente aquelas amparadas na empatia e na cumplicidade, um lugar especial para o silêncio. No filme Rapsódia em Agosto, de Akira Kurosawa, há uma cena delicadíssima sobre palavras guardadas. Na história, um grupo de adolescentes passa as férias com a avó em Nagasaki. Isso ocorre 45 anos depois da explosão da bomba atômica, quando a avó do clã perdeu seu marido. Um dia, a senhora recebe a visita de uma amiga. As crianças espiam de longe. Elas tomam chá juntas. Passam horas sem trocar uma única palavra. No encontro noturno, quando vovó conta histórias para os meninos, um deles pergunta por que elas ficaram mudas. Ela explica que a amiga também perdeu o marido para a guerra e que, às vezes, elas só querem estar juntas. E basta. 

     

    As entrelinhas 

    “Por que você gosta de conversar comigo? Isto é, supondo que você realmente goste…” Fiz essa pergunta a alguns amigos – depois de tanto ler, refletir e conversar, já (quase) duvidava da minha capacidade de ser. O universo é reduzido, porque nem toda troca se dá entre amigos. De qualquer maneira, foi um exercício rico. Eu nunca tinha parado para pensar que em nossas conversas “falamos como somos, sem precisar mascarar, disfarçar ou pedir desculpas, por achar que somos melhores do que parecemos…”. Somos quem somos. E há os descaminhos. “Temos sempre um ponto de partida e a chegada é um mistério.” De um extremo ao outro, risadas, atalhos, olhos marejados. Pausas e, nelas, surgem descobertas. Que conversa boa, e viva… 

    Quando eu era menino, o que mais gostava nos livros era nossa imaginação de criança completar o que eles nos contavam, nas entrelinhas”, disse o cineasta alemão Wim Wenders, no documentário Janela da Alma. “Quando comecei a ver filmes, eu também queria ler nas entrelinhas e naquele tempo isso era possível, você podia ler entre as imagens. Em um filme de John Ford, por exemplo, havia espaço entre as tomadas. Atualmente, na maioria dos filmes, não há mais espaço para a gente inserir os sonhos.” Espaço para inserir os sonhos. Desejo que suas conversas tenham essa abertura. Sim, pois falam, escrevem e calam as pessoas. Conversam conosco, cada qual a seu modo, os livros, os filmes, as canções. Em todas as narrativas, porém, é maravilhoso transitar nas entrelinhas. Sabemos bater papo? E sonhar nas entrelinhas?

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