Cozinhar é um exercício com muito aprendizado
Quatro mulheres contam como aprenderam a cozinhar; aprender a preparar uma refeição pode ser um exercício de observação a partir daqueles que admiramos
“Todo dia ela faz tudo sempre igual.” Minha mãe era assim, como esse trecho da música “Cotidiano”, do Chico Buarque. Pelo menos na cozinha.
Ela preparava o almoço para a família. Todos os dias. Quando criança – e estudando à tarde –, adorava observar o movimento e os cheiros que dali saíam.
O barulho da panela de pressão cozinhando o feijão, o chiado da cebola sendo refogada para preparar o arroz. Gostava de ficar em um canto, observando.
Seus gestos pareciam uma dança cadenciada. Cortar o bife, passar na farinha de rosca, depois nos ovos batidos e novamente na farinha de rosca. Nessa sequência.
Fritá-los e transformá-los em bifes à milanesa, que precisavam ser colocados em óleo quente. Posso ajudar, mãe? “Não, melhor você sair daqui. Cozinha não é lugar para criança.” Frustração.
Com o tempo aprendi a me manter silenciosa. Olhar, apenas olhar. Foi desse jeito, pela observação minuciosa dos gestos dela que aprendi a cozinhar.
Não só os dela, mas os de outras mulheres que, de alguma forma, cruzaram meu caminho: minha tia Lybia, a mãe de um namorado chamada Suzana e a avó dele, Sônia.
É interessante perceber como consigo reproduzir esse fazer sem nunca ter passado por um curso formal. Nada.
Preparo os bifes à milanesa da minha mãe, a carne de panela da minha tia, tempero o feijão do mesmo jeito que Sônia.
E, o mais bonito disso: enxergo na minha cozinha todas essas mulheres. Uma rede de afetos e de sabores que se constrói ao longo do tempo não pelo saber estruturado, mas por aquele mais visceral, interno, carregado da gente mesma.
Quem te ensinou a cozinhar?
Se a observação me moveu ao preparo de pratos diversos, como será que outras pessoas chegaram a esse mesmo lugar?
Movida por essa curiosidade, perguntei para gente amadora e profissional quem as ensinou a cozinhar – ou provocou nelas essa vontade.
A confeiteira Joyce Galvão, boleira de mão cheia e autora do ótimo A Química dos Bolos: Receitas e Segredos para Dias Mais Doces (Companhia de Mesa), tem uma história interessante sobre isso.
A mãe de Joyce não sabia cozinhar. Mas tinha algo que ela fazia: bolo de caixinha, desses vendidos em supermercado.
“Ela preparava, colocava uma cobertura de brigadeiro e levava pedaços como lanche ao me buscar na natação”, conta ela.
“Eu adorava comer esses bolos da minha mãe. Meu pai também saía muito para comer fora, a trabalho, e sempre comentava o que havia experimentado nos restaurantes. Aquilo me aguçava”, relembra Joyce.
Ela ainda confessa ter assistido muito ao programa de culinária da Ofélia (“Cozinha Maravilhosa da Ofélia”, apresentado pela culinarista Ofélia Ramos Anunciato, de 1968 a 1998) quando criança, antes de ir para a escola.
Todas essas experiências despertaram em Joyce o amor pela cozinha e, dessa forma, o desejo de aprender.
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Cozinhar para retomar lembranças
Paciência, observação e generosidade também são ingredientes que compõem o aprender a cozinhar (FOTO: UNSPLASH/KELLY SIKKEMA)
Já a jornalista e escritora Mariana Weber, autora do Cozinha de Vó (Superinteressante), aprendeu olhando os cadernos de receitas da mãe e da avó.
Ao se tornar mãe, nasceu também o desejo de fazer os pratos que comia na infância. “Minha primeira receita foi uma torta de banana. Peguei com minha mãe, mas não ficou tão boa. Ela me disse que as bananas precisavam estar mais maduras”, recorda.
Depois dessa primeira experiência, Mariana passou a ter o hábito de ligar para a mãe ou para a tia-avó para tirar dúvidas sobre o modo de fazer as coisas.
“À medida que fazia, fui me sentindo mais capaz de preparar outras coisas também”, diz. A comida, conta ela, sempre foi algo importante na casa da infância.
Nos finais de semana, a mãe e o pai iam para a cozinha. “A comida como centro do encontro, com a família reunida. Essa é uma lembrança boa, que carrego comigo e que desejei retomar.”
Viver é aprender
Não aprendemos apenas pelas vias formais, numa escola de culinária, por exemplo. “Se fosse assim, a humanidade não teria chegado aonde chegou. Aprendemos de muitas formas, e uma delas é a experiência afetiva”, me explica Alex Bretas, uma das principais referências em aprendizagem autodirigida do país.
Somos influenciados por aquilo que nos rodeia, é o modo mais natural de aprender. É assim que um bebê entende como andar, falar, comer.
E cozinhar observando aqueles que amamos ou admiramos, participar de conversas sobre o comer e de almoços em família, faz parte desse entendimento delicado e até amoroso. Um entendimento que, lá na frente, pode nos instigar a preparar também o próprio prato.
“Minha avó me ensinou gestos, movimentos e delicadezas. Ela nunca me passou uma receita e sempre dizia: ‘Ah, cada dia é de um jeito, depende do seu dia’. Seu arroz branco era algo difícil de explicar. Sublime, para dizer o mínimo”, conta a premiada chef de cozinha Roberta Sudbrack.
Quando o cozinhar ensina a viver
“E ela não conseguia passar a receita, achava bobo demais. Explicava que era importante refogar o arroz com muita calma. Até sentir que estivesse todo soltinho. Não usava cebola, só alho. A água era sempre fria, e um dedinho só!”
A referência da avó é algo tão intenso na rotina, dentro e fora da cozinha, que muita gente acredita que foi ela quem ensinou Roberta a preparar algumas refeições.
Mas o aprendizado foi tão além… “A cena mais linda da minha infância era abrir a geladeira e encontrar taças de cristal, acomodando a gelatina. Não era uma gelatina qualquer! Eram camadas delicadíssimas de gelatina, creme de baunilha, marshmallow e uma cerejinha que coroava a obra de arte. Eu ficava boquiaberta com aquela cena”, recorda.
E continua: “Minha vó era rígida, exigente e mandona. Mas era justa e sabia acarinhar de muitas formas, principalmente pela comida. Ouvindo o que falo sobre ela, me enxergo claramente. Pensando bem, acho que a minha avó me ensinou a viver e, nas horas vagas, a cozinhar também”, resume lindamente Sudbrack.
Talvez seja sobre isso o tempo todo.
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ANA HOLANDA é autora do livro Minha Mãe Fazia, sobre memórias afetivas e cozinha. Gosta de cozinhar e se emociona quando a filha Clara a acompanha.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 238 da Vida Simples
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