Ser humano é ser dotado do grande dom da preocupação. Somos, provavelmente, a única criatura que fica ansiosa com o futuro e que se arrepende do passado. Aqueles pensamentos “e se…” e “que bom seria…” despendem muita energia.
Tanto literalmente — porque o cérebro é um grande consumidor de nutrientes e oxigênio — quanto metaforicamente. Não é de espantar que, muitas vezes, a gente se sinta exausto com a rotina e sem vontade de seguir em frente.
No mundo ocidental, tendemos a pensar que a solução para isso — o caminho para a calma, digamos — é esvaziar a mente. Toda uma indústria surgiu oferecendo isso. Retiros silenciosos, aplicativos de mindfulness, aulas de ioga com cantos e sinos e até versões de fácil consumo do budismo exibem a possibilidade de uma vida tranquila.
A questão é que, muitas vezes, apesar de tudo isso, continuamos seguindo ansiosos. Talvez ainda mais: se tais retiros, aulas e aplicativos parecem não trazer tranquilidade, corremos o risco de nos sentirmos culpados por não sermos “tão bons” nisso. E todo o processo pode acabar sendo uma grande frustração para os envolvidos.
Não sou muito bom em praticar nada disso. Acho entediante meditar. Não me conecto bem com a prática do mindfulness. No entanto, há pouco tempo, encontrei um tipo de tranquilidade em um lugar muito inesperado: o pessimismo.
Como assim, pessimismo?
Ao ouvir essa palavra, você deve estar pensando: o pessimismo não é algo que devemos banir de nosso jeito de pensar? Não devemos passar pela vida sorrindo, sendo positivos e otimistas? Não é isso o que os livros de autoajuda nos dizem desde que foram inventados?
Sim e não. Depois que o movimento chamado Pensamento Positivo, que prosperou nos EUA nas décadas de 1960 e 1970, ficou conhecido, temos essa ideia de que sorrir fará com que nos sintamos melhor com relação ao mundo.
É verdade que é muito melhor passar o dia sorrindo do que franzindo o cenho. Contudo, logo fica dolorosamente claro que o otimismo ensolarado tem seus limites, porque quando as coisas dão errado (e dão mesmo) ficamos totalmente desapontados, como uma criancinha cujo sorvete acabou de cair no chão.
Em vez disso, precisamos mudar nossa forma de olhar para o mundo. Um caminho é tentarmos buscar respostas em um grupo de filósofos romanos chamados “estoicos”, especialmente Lucius Annaeus Seneca — ou Sêneca, como é mais conhecido.
Ele era um homem rico, feliz e bem-sucedido, mas muito ciente de que as coisas poderiam dar errado a qualquer momento. Ao pensar dessa forma, não se via como alguém especial ou azarado.
Sentia que a vida era assim — para todos. O mundo é, portanto, na maior parte do tempo, imprevisível. Problemas acontecem e, quando as coisas não saem como planejamos, frequentemente é por causa de algo fora de nosso controle.
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“A vida não é um morango”
Isso é algo difícil, para nós, ocidentais, de aceitar. Especialmente porque vivemos nas sombras do Iluminismo, sentimos que temos o poder de fazer a vida se curvar à nossa vontade.
Deveríamos, como ditam tantas redes sociais, conseguir “curtir o momento” e “fazer a diferença no mundo”. Deveríamos ser capazes de tornar nossa vida mais feliz e plena. Se não conseguimos fazer isso, talvez seja porque tomamos a direção errada ou não tenhamos tentado o bastante.
Essa, por acaso, é a raiz de um péssimo desdém, em muitas sociedades ocidentais, por pessoas sem-teto ou viciadas. Um argumento falacioso de que ter uma vida decente é apenas uma questão de força de vontade. De que não é possível que elas tenham se esforçado o suficiente. E tal raciocínio se sustenta até nos vermos na mesma posição e percebermos que isso pode não ser realmente nossa culpa.
Entretanto, o pensamento de Sêneca não era de que devemos desistir de curtir a vida ou mudar o mundo — pelo contrário. Para ele, deveríamos entender que sucesso e fracasso são resultados bem aleatórios. Portanto, temos muito menos controle sobre isso do que supomos. E que, em vez de presumirmos que tudo correrá bem, deveríamos nos preparar psicologicamente para as coisas darem errado.
Aprenda a dosar o pessimismo no dia-a-dia
Para isso, Sêneca propôs começarmos o dia com o que chamava de premeditatio, ou premeditação, na qual pensamos em tudo o que pode dar errado: aquela reunião com o chefe, o encontro no bar, a conversa difícil com os pais.
A ideia não é se desesperar, mas entender que, mesmo tudo dando errado, ainda assim você sobreviverá — pode ser doloroso, mas do chão não passa.
Sêneca também recomendou testar essa ideia na prática. Embora vivesse bem, de vez em quando dormia no chão da cozinha e comia pão amanhecido para provar a si mesmo que sobreviveria assim.
Gosto de pensar nessa atitude como um pessimismo construtivo, algo diferente do pessimismo triste e cínico que as pessoas amargas frequentemente demonstram. É realista que a vida, às vezes, traga reveses. Ele entende que, na maior parte deles, não somos culpados, e sabe que, na maioria dos casos, passaremos por eles.
Digo “na maioria dos casos” porque haverá um momento que não iremos superar: o da nossa morte. Ela é tão eliminada de consciência que caímos na ilusão de que, de alguma forma, ela não acontece.
Como Marco Aurélio, imperador romano e grande seguidor de Sêneca, escreveu em Meditações: “Não aja como se fosse viver 10 mil anos. A morte paira sobre sua cabeça. Enquanto você viver, enquanto estiver em seu poder, seja bom”.
É uma questão de equilíbrio
Para a maioria de nós, a morte virá inesperadamente. Nosso único trabalho é viver bem até esse momento.
Durante a maior parte da minha vida, muito antes de ter ouvido falar de Sêneca, resisti a esse jeito estoico e pessimista de pensar.
Sempre fui otimista, pulando de projeto em projeto com uma energia contagiante. Quando as coisas corriam bem, era ótimo. Os problemas vinham quando eu fracassava. Agora percebo que eu não tinha uma maneira útil de lidar com esses momentos a não ser, constantemente, culpar a mim mesmo.
Me levantei e recomecei várias vezes, mas isso demandou energia. Há um limite para cair de cara no chão. Com Sêneca, percebi que precisava ajustar minha visão de vida ao transformar meu otimismo (“Tem que dar certo”) em empolgação (“Ficarei animado se der certo”).
A mudança é sutil, mas constatei que esse jeito de pensar abre espaço para uma nova ideia que não se encaixa no otimismo: “Pode não dar certo, mas a vida continua”.
Essa pequena mudança trouxe muita tranquilidade para mim. Ainda fico empolgado com a vida e animado com suas possibilidades, mas também menos ansioso quanto às chances de algo dar errado. E isso, juro, não me impede de sorrir.
Sobre a série Dilemas
A Série Dilemas é uma parceria entre a revista Vida Simples e a The School of Life e traz artigos assinados por professores da chamada “Escola da Vida”. A série tem como objetivo nos ajudar a entender nossos medos mais frequentes, angústias cotidianas e dificuldades para lidar com os percalços da vida.
A The School of Life explora questões fundamentais da vida em torno de temas como trabalho, amor, sociedade, família, cultura e autoconhecimento. Foi fundada em Londres, em 2008, e chegou por aqui em 2013. Atualmente, há aulas regulares em São Paulo. Para saber mais: theschooloflife.com/saopaulo
David Baker é jornalista, escritor, coach, consultor, professor e um dos fundadores da The School of Life no Brasil. Ele foi, também, um dos criadores da revista Wired no Reino Unido, que trata sobre tecnologia. E escreve regularmente para algumas das mais reconhecidas publicações do mundo.
Mais da Série Dilemas
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– Como é possível lidar com o fracasso?
– Insegurança: Como ter mais confiança em si mesmo
Conteúdo publicado originalmente na Edição 196 da Vida Simples
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