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Como é possível lidar com o fracasso?
(LETTERING: Tiago Gouvêa) Markus Spiske/Unsplash
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Começarei este texto revelando uma verdade: você vai fracassar. Todos nós vamos. É impossível evi­tar o fracasso no mundo moderno.

Isso acontece porque o fracasso é uma questão de perspectiva. Uma vida morna e sem grandes esperan­ças não foi sempre considerada um baque.

Na verdade, pela maior parte da história da humanidade, as pes­soas levavam a vida que lhes cabia, sem maiores expectativas.

Não ha­via muitas oportunidades para as­censão social ou conceitos estra­nhos como “perseguir seus sonhos”. Essas coisas são invenções relativa­mente recentes, dos últimos cinco a seis séculos.

Hoje temos a certeza de que podemos sempre mais. De que todos os nossos sonhos estão ao al­cance de nossas mãos. Pior, se não estamos tendo a vida perfeita que imaginamos é porque não fomos competentes o suficiente para realizá-la.

A mensagem que poderia ser libertadora — “podemos ser tudo o que quisermos” — transformou-se em um dos grilhões mais pesados que a humanidade já carregou. Tor­namo-nos reféns de nossas expec­tativas irreais. Escravos sem um se­nhor para odiar.

A ilusão do fracasso (e do sucesso)

Mas há algumas maneiras de escapar dessa armadilha. Pode­mos nos voltar para a arte, cultura e filosofia, buscando ferramentas para corrigir nossas perspectivas.

Por exemplo, podemos começar questionando a ilusão de que esta­mos no controle de tudo o que acon­tece em nossa vida. A verdade é que o mundo é muito mais aleatório do que gostamos de acreditar.

Nós temos um viés psicológico de or­dem, justiça e equilíbrio, e procura­mos interpretar o mundo de acor­do com essa tendência. Muitas re­ligiões são especialistas em vender esse ideal, levando-nos a acreditar que coisas boas vêm para aqueles que merecem; e a justa punição, pa­ra quem erra e por isso deixa de ser merecedor.

Diante da observação coti­diana de que a rea­lidade não é assim, tranquilizam-nos com a possibilida­de da reparação em outra vida. Infelizmente, no mundo real as coisas não obedecem à ordem que desejamos.

A verdade é que podemos ter fracasso mesmo sendo bem-intencionados, ou competentes. Mesmo que tenhamos talento. Por isso, é importante desassociar o fracasso da avaliação que fazemos de nós mesmos.

O fracasso também acontece a quem não o merece. Na verdade, a maioria daqueles que imaginamos serem “pessoas de sucesso” têm histórias de fracassos espetaculares em suas trajetórias.

Esse fato é muitas vezes mal compreendido como um consolo do tipo: “Mesmo se hoje eu estou fracassando, ainda posso ser uma pessoa de sucesso”. Mas não é isso.

O ponto é entendermos que não há essa divisão entre “pesso­as de sucesso” ou “pessoas fracas­sadas”. E mais, que sucesso ou fra­casso não são boas medidas do va­lor das pessoas.

As noções deturpadas de sucesso

Atribuir valor às pessoas, in­cluindo a nós mesmos nisso, é uma questão muito difícil. Esse é um dos grandes debates da filosofia e, pro­vavelmente, um que nunca terá uma resposta definitiva.

Mas o debate serve para nos alertar contra as res­postas fáceis, para nos fazer ques­tionar. Como recomendava o filósofo Friedrich Nietzsche, devemos ser especialmente suspeitos das opi­niões que nos parecem mais óbvias e que nos são mais caras.

Essas são as que têm mais chances de estarem erradas. Assim, corriqueiramente, associamos sucesso a ter muito dinheiro, poder ou fama. Ou também a receber promoções, ter uma famí­lia perfeita ou escrever artigos pa­ra uma revista.

E, mesmo sem saber se essas coisas são, realmente, capa­zes de determinar o que é ter suces­so, já passamos a julgar as pessoas com base nisso.

São pelo menos dois níveis de julgamentos que fazemos com base em opiniões, possivel­mente, mal justificadas: inferir que certas conquistas significam “ter su­cesso” e, depois, acreditar que “ter sucesso” é o mesmo que “ser uma pessoa de valor”.

Quando paramos para pensar sobre valores, questionando nos­sas primeiras intuições — normal­mente preguiçosas e preconcebidas —, podemos ganhar outra visão so­bre sucesso e fracasso.

Por exemplo, podemos concluir que é mais impor­tante avaliar a direção para onde es­tamos indo que cada passo dado no caminho.

Especialmente se conside­rarmos que muitos dos nossos pas­sos são cegos, ou erroneamente di­recionados por expectativas irreais. Como afirmou o mestre da arte retó­rica Séneca: “Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe aonde vai”.

Os medos e sua relação com o fracasso

Deveríamos, portanto, nos es­forçar para direcionar nossa vida de acordo com um conjunto de valores que tenhamos tido tempo de ques­tionar, refletir e aperfeiçoar.

Talvez essa seja uma das tarefas mais importantes a que deveríamos re­almente nos dedicar. Mas também é das mais árduas, especialmente quando nossos valores diferem da­queles mais disseminados na cultu­ra em que vivemos.

Essa dificuldade também nos ensina algo importante sobre o fra­casso. Nos mostra que, quando o te­memos, normalmente o que de fa­to nos amedronta é a solidão.

Te­mos pavor de sermos mal avaliados, de não sermos apreciados, em últi­ma instância, de não sermos ama­dos. Por isso nos esforçamos tanto para dar certo, fazer bem feito, pa­ra termos algum critério objetivo de que somos merecedores de afe­to.

Esse é um mecanismo eficiente para a criação de esnobes, o que ex­plica a fácil proliferação desses ti­pos em nossa sociedade. E nunca is­so foi tão evidente quanto na era das redes sociais, na qual homens e mu­lheres se desdobram para colecionar pequenas demonstrações de afeto, na esperança de que, em número su­ficiente, elas bastem para lhes prote­ger do temido fracasso.

O segredo do sucesso é apreciar as falhas

Tantas luzes brilhantes nos ce­gam para uma verdade singela: a re­alidade pode ser muito mais atraen­te que a perfeição. Essa é uma lição que a arte oriental cuidou de não es­quecer de cultivar, representada na estética zen conhecida por wabi sabi, que celebra a beleza da imperfeição e da impermanência.

Um exemplo contundente da wabi sabi é a prática orien­tal de consertar ob­jetos quebrados (um vaso ou uma xícara de louça, por exem­plo) com remendos de ouro, a kintsugi.

As cerâmicas kint­sugi exibem suas fa­lhas com graça, sem nenhuma pretensão de escondê-las. Ao contrário, como objetos estéticos, elas pedem que as apre­ciemos justamente por suas falhas. Eu costumo brin­car que esses vasos são mais corajo­sos que todos nós, e nos ensinam al­go de grande valor.

Uma sociedade de esnobes facilmente se torna uma competição insuportável por aten­ção e confirmação. O mais interes­sante é perceber que é exatamente em uma sociedade assim que a ca­pacidade de empatia e despojamen­to pode ser inconscientemente de­sejada. Quem sabe mostrar suas fa­lhas não possa valer ouro… .

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Sobre a Série Dilemas

A Série Dilemas é uma parceria entre a revista Vida simples e a The School of Life e traz artigos assinados por professores da chamada “Escola da Vida”. A série tem como objetivo nos ajudar a entender nossos medos mais frequentes, angústias cotidianas e dificuldades para lidar com os percalços da vida.


A THE SCHOOL OF LIFE explora questões fundamentais da vida em torno de temas como trabalho, amor, sociedade, família, cultura e autoconhecimento. Foi fundada em Londres, em 2008, e chegou por aqui em 2013. Atualmente, há aulas regulares em São Paulo. Para saber mais: theschooloflife.com/saopaulo


Guilherme Spadini é médico psiquiatra e psicoterapeuta de adultos e adolescentes em São Paulo. Trabalha no Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno (Grapal) da Faculdade de Medicina da USP e é professor da The School of Life no Brasil, onde ministra a aula Como Lidar com o Fracasso.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 199 da Vida Simples

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