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Ideias inspiradoras para reescrever sua história após um trauma
(ILUSTRAÇÃO: SUSANA CARVALHINHOS)
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Podemos, na hora que quisermos, reescrever um capítulo novo de nossa própria história e contá-la de uma forma diferente para nós mesmos e para o mundo, curando feridas e superando questões difíceis. Mas como? Sou um tanto devoto da poeta goiana Cora Coralina (1889–1985), pseudônimo criado na adolescência por Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Vivendo longe dos grandes centros urbanos, foi doceira, cuidou de pen­são, trabalhou na roça e só veio a publicar seu primeiro livro quando já contava 76 anos.

Mas é na segunda obra de sua autoria, intitu­lada Meu Livro de Cordel, que está o poema “Aninha e suas pedras”, que há muito leio e re­leio. Começa assim:

“Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo no­vos poemas.
Recria tua vida, sempre, sem­pre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.”

Pensar nela e nesses versos foi inevitável enquanto embarquei na escrita dessa maté­ria que você lê agora, a qual, justamente, vem como um convite para que não caiamos na armadilha de acreditar que nossa vida está encerrada como está, predestinados a sermos sempre quem fomos ou aquilo que disseram que éramos.

Afinal, tal qual este mesmo texto, cujos parágrafos foram escritos e reescritos tantas vezes, nossa existência também pode ser assim.

As inúmeras possibilidades de reescrever sua história

Existem inúmeras formas de responder a essa pergunta. Mas a principal delas se esta­belece ao tomarmos a rédea da jornada inte­rior, analisando os propósitos e significados da vida.

“Sua trajetória é autoral e, quando você acessa o seu poder pessoal, é capaz de escrever e reescrever sua história sempre.

Se deixar de lado o que esperam de você, a tentativa de agradar e ser aceito, você pode direcionar toda a sua vontade ao que de fato deseja viver.

Não tenha vergonha e nem medo de errar, pois estar vulnerável pode ser a for­ça que irá trazer sua singularidade no mun­do”, enfatiza a terapeuta integrativa e psica­nalista Adriana Perazzelli.

Dicas: reescreva sua história após um trauma Quedas, inevitavelmente, fazem parte do caminho. Cada um em sua trajetória vai experimentá-las algum dia

Reescrever-se é uma necessidade vital

Não é só com você nem só comigo: todos, em algum momento, já sentiram quando tudo pa­rece estar estagnado. Sem perceber, o piloto automático foi ativado e os dias se sucedem de igual forma, com as mesmas conversas de elevador, os mesmos sorrisos sem graça, os relacionamentos que parecem não ter senti­do. Trocamos o modo viver pelo sobreviver.

Porém, quando começamos a mudar nosso sistema de crenças e compreendemos nos­so funcionamento, podemos rever hábitos e começar novamente. Aliás, se você já ouviu falar que nunca é tarde para isso, saiba de uma coisa: essa afirmação está correta.

Muitas vezes a necessidade de se reinven­tar se dá após um fracasso, uma decepção ou uma ruptura. Foi assim com a própria Adriana, que passou por um divórcio há dois anos e que atravessa, há dois meses, o que acredita ser o pior momento de sua vida, depois de sua mãe ter tido um grave AVC, cabendo apenas os cuidados paliati­vos no estágio final.

“Quando algo doloroso nos acontece, inevitavelmente ficamos afo­gados nessa dor e sofrimento. Isso detona diversos outros sentimentos, como triste­za, raiva, revolta, apatia, angústia, medo etc.”, conta ela.

Se redescobrir para se reescrever

“Quando passei pelo divór­cio, pensei, nesse processo de luto, que não conseguiria seguir sozinha. Tinha medo de não dar conta de ser mãe solo e manter um lar sem a parceria. Estar solteira de novo foi inquietante e estranho. Quando as fases desse luto foram evoluindo, me redesco­bri como mulher e com mais autoestima. A conexão com minha filha ficou ainda mais bonita. E, sim, dei e dou conta de ser a mãe dela nesse novo formato de família, além de ver minha vida prosperar, por es­tar mais feliz comigo. A dor me trouxe uma versão mais potente de mim mesma, e a vulnerabilidade me tornou mais corajosa para mudar e seguir a vida com confiança e força”, compartilha.

Entretanto, ante uma série de inseguran­ças e do hábito humano de procrastinar, identificar em si próprio a necessidade de escrever um novo capítulo, às vezes mu­dando completamente o enredo, pode ser doloroso, ao mesmo tempo que inevitável e necessário.

“Posso ter medo do suces­so, e agir irá me levar lá. Tenho medo de ser rejeitado, então nem vou. Entre tantas explicações que uma procrastinação pode representar, é necessário compreender o porquê dessa paralisia para conseguirmos criar aquilo que, de fato, queremos e des­cobrir o que podemos alcançar”, relata a psicanalista.

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Encarar o passado com honestidade sem se importar com expectativas

Para Adriana Perazzelli, a arte para sermos nós mesmos convida a sair desse lugar que não é nosso para descobrir o que a alma pede e, sem se importar com as expectati­vas do outro, poder seguir a estrada onde o coração vibra mais feliz.

Nesse processo, encarar com honestidade o nosso passado é uma ação primordial e não deve ser evitada. É o que enfatiza San­dra Linquevis, psicóloga clínica humanista com especialização em cuidados paliati­vos.

Ela lança um olhar sobre os estudos do renomado psicólogo alemão Paul Baltes (1939–2006), que construiu uma impor­tante teoria a partir de alguns princípios fundamentais do desenvolvimento huma­no.

Entre eles, está o que diz que cada ser humano pode se desenvolver permanen­temente, sendo que cada período de sua vida é influenciado pelo que nos aconteceu antes e irá afetar o que a gente ainda vai viver.

Outro princípio aponta que o desen­volvimento depende do tempo histórico e do contexto no qual cada um está inserido.

“Todos os seres humanos influenciam e são influenciados pelos seus contextos his­tóricos e sociais. Nós não só respondemos aos acontecimentos à nossa volta, mas o tempo todo interagimos e os modificamos. Diante disso tudo, olhar de forma hones­ta para o nosso passado é fundamental para continuarmos a construção de nossa história, observando os erros e acertos, os bons e maus momentos, as dores e alegrias, porque em cada situação vivida podemos aprender ou desenvolver novos recursos”, estabelece.

Dicas: reescreva sua história após um trauma Num primeiro momento, é natural se sentir perdido, sem encontrar saídas para recomeçar

Alimentar a força de mudança com generosidade e acolhimento

Justamente pelas nossas ações do pas­sado determinarem as ações no presente, quando nos movimentamos para reescre­ver nossa história, para recomeçar algo, faz-se necessário alimentar essa força de mudança. E também ser­mos generosos e nos acolhermos diante da necessidade de lidar com consequências nem sempre agradáveis de algo que esco­lhemos no ontem.

A psicóloga, contudo, baseada em teorias científicas sistêmicas, não acredita na possibilidade de cada um reescrever a sua história ou recomeçar a vida. Todavia, ela reforça que sempre será possível continuar escrevendo a trama de forma diferente, sempre será possível co­meçar uma nova.

“Uma característica que possuímos é a resiliência, a capacidade de a gente se reorganizar após um evento traumático. O primeiro passo, sem dúvida, é buscar a autoaceitação com muita refle­xão, com ajuda ou até mesmo sozinhos.”

Compaixão: uma ferramenta capaz de mover pedras

Lançado ano passado e intitulado A Epide­mia Invisível – Como lidar com as suas feri­das emocionais e avançar em direção à cura (Sextante), do psiquiatra norte-americano Paul Conti, o livro apresenta como os trau­mas atuam na vida de cada um, ferindo e corroendo a esperança e a compaixão.

Às vezes em menor grau, outras em níveis ele­vadíssimos, os traumas estão presentes na vida de todos, mesmo que indiretamente, quando atingem pessoas muito íntimas e apreciadas por nós.

Na publicação, o autor ajuda o leitor a iniciar processos de cura; ou seja, escrever um novo capítulo desse longo livro que é a nossa existência.

De várias maneiras, a compaixão destra­va tudo. Está no centro da comunidade e da humanidade, assim como de nosso traba­lho contra o trauma. E, quando se trata do crescimento e da resiliência pós-trauma, ela domina. Não é verdade que o que não mata engorda. O que não mata pode nos deixar com feridas que tornam a vida mui­to mais difícil. Mas também pode nos dei­xar mais sábios, mais agradecidos e mais compassivos. E, quando se trata do quadro maior – não só nos ajudar, mas ajudar os outros e o mundo –, a compaixão faz toda a diferença”, escreve ele.

Evidentemente, lidar com a memória e com os desconfortos advindos de um trau­ma pode intensificar o medo de alterar o enredo da história, de começar novamente.

Todavia, ainda que experiências traumáti­cas tenham a força de paralisar uma pes­soa por meses e até anos, olhar para elas por outra perspectiva pode gerar um re­sultado benéfico de transformação.

“É preciso abandonar aquela velha história para começar um novo capítulo, já que posso estar me alimentando do que foi e já mor­reu. Isso é muito ruim porque é como regar uma planta morta na esperança de que ela me traga uma nova florada. A aceitação de que o que foi vivido te nutre com boas lem­branças, mas fica no passado num lugar especial, e assim você pode se libertar para seguir em frente”, destaca a psicanalista Adriana Perazzelli.

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No fundo do poço há terra fértil para semear

Em outro livro, dessa vez o clássico Mu­lheres Que Correm com Os Lobos (Rocco), da psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés, ela escreve que “a melhor terra para semear e fazer crescer algo novo outra vez está no fundo”.

E que, justamente por isso, quando estamos no fundo do poço, apesar de extremamente doloroso, também esta­mos em um ótimo terreno para semear.

Adriana concorda que ter essa compreen­são pode ajudar a se reinventar, mesmo dian­te de uma grande adversidade. Mais ainda, explica que, geralmente, quando vivemos situações nas quais nos sentimos sem saí­da, primeiro ficamos despidos, impotentes diante do problema.

“É exatamente nessas situações em que a vida nos apresenta uma nova versão de nós mesmos. O que eu acho mais incrível é que conhecemos de fato o tamanho da nossa força quando precisamos dela para superar as adversidades e nos ver capazes de sair no fundo, assim como a flor de lótus que floresce mesmo com as raízes submersas no lodo”, observa.

Reescrever: substituir sentimentos e celebrar conquistas

Quem já plantou algo, seja uma pequena horta na varanda de um apartamento, em um amplo quintal ou se enveredou por uma agrofloresta em muitos hectares de terra, sabe que uma semente jogada de qualquer jeito tende a não vingar.

Os cui­dados com a adubação e cobertura do solo, tanto quanto com a rega adequada, são essenciais para um bom crescimento e co­lheita. Assim também é cada etapa íntima do processo de começar uma nova história, substituindo as emoções negativas por po­sitivas e celebrando as conquistas.

Não queremos negar que são várias as experiências que passamos ao longo de nossa vida e que podem causar muita dor e sofrimento. Como torna claro Sandra Lin­quevis, algumas delas nos tiram do rumo e nos paralisam.

“Mas a vida não acabou. São várias as estratégias de enfrentamento que cada um de nós pode buscar. O importante é não colocarmos nossa dor debaixo do ta­pete. Devemos viver o sofrimento, nos per­mitindo chorar, sentir raiva, nos calar, nos recolher, o que for preciso para superar.”

Dicas: reescreva sua história após um trauma Enfim, sentindo que há muitos caminhos no porvir, podemos dar um novo salto em direção àquilo que desejamos viver

Para se reescrever, pratique autoconhecimento e autoaceitação

“Dessa forma conseguiremos voltar a viver plenamente e escreveremos quantos novos capítulos quisermos em nossas vidas”, ex­põe, lembrando que o caminho para quem quer começar uma vida nova é a partir do autoconhecimento e da autoaceitação.

Por fim, a psicóloga clínica humanista compartilha uma experiência pessoal: “Há cerca de seis anos, minha vida virou de cabeça para baixo. Recebi a notícia de que uma pessoa que eu amava muito esta­va com uma doença cruel e incurável – es­clerose lateral amiotrófica (ELA) –, e, dois meses depois, meu então marido pediu o divórcio. De uma hora para outra perdi meu casamento, minha casa, minhas refe­rências e minha madrinha”, conta ela, sen­tindo-se perdida de si mesma.

Foi preciso muito esforço e muita ajuda para Sandra se recuperar: psicoterapia, medicação, meditação, longas caminhadas, música, yoga, mergulho na espiritualidade e muita autorreflexão.

“Essa foi a minha fórmula para me reerguer e recolocar minha vida em um caminho de satisfação. Mas o ser humano é único, singular. Por isso, para cada um, haverá uma maneira diferente de se encontrar. Não importa a dimensão da sua dor ou o estrago que ela fez em sua vida, sempre será possível voltar a ser fe­liz.” E agora é hora de começar a semear.

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GUSTAVO RANIERI é jornalista e diz que, dos capítulos que escreveu, o mais bonito é aquele em que está com a esposa e três filhas.


SUSANA CARVALHINHOS – nascida em Lisboa, trabalha como ilustradora desde 2010. Além de incursões em histórias em quadrinhos, cruza a linguagem da ilustração com a da azulejaria. @susanacarvalhinhos


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Conteúdo publicado originalmente na Edição 247 da Vida Simples

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