Conquiste sua liberdade
Ter autonomia, assumir suas decisões e arcar com o que possa surgir a partir disso não é uma tarefa fácil, mas é essencial para uma vida mais plena, leve e cheia de alegrias.
A americana Cheryl Strayed decidiu, aos 26 anos, seguir para a jornada mais importante da sua vida, aquela que poderia transformá-la “tanto na mulher que sabia que poderia vir a ser como na menina que já fui um dia”, como ela mesma descreveu. A tal jornada tinha 4.286 quilômetros de extensão e significava percorrer parte da Pacific Crest Trail, uma trilha pela natureza selvagem dos Estados Unidos que vai da fronteira do México, na Califórnia, até o Canadá, ao longo de uma cadeia de montanhas, cruzando parques nacionais, passando por desertos, florestas, rios e algumas estradas. Depois de perder a mãe para o câncer e, por causa disso, ter se distanciado da família, se separado do marido e buscado uma vida destrutiva nas drogas e em relações de uma noite só, Cheryl sentiu que precisava domar o conflito (que nunca para de nos assolar) entre os sonhos de sossego e os anseios de independência, entre o desejo de pertencimento e a certeza de que somos seres solitários. E sozinha quis seguir um caminho no sentido mais literal do termo para mostrar a si mesma que podia, sim, ser dona do seu próprio nariz, sem depender de nada ou de ninguém para fazer o que quer que fosse. Nem mesmo enfrentar uma trilha inóspita, emocional e fisicamente desgastante por três meses.
“Uma vez que fui e fiz, que caminhei todos aqueles quilômetros durante todos aqueles dias, houve a percepção de o que eu achava ser o começo não tinha sido de fato o começo”, afirma ela no livro Livre (Objetiva), que lançou para contar sua trajetória e que ganhou uma versão cinematográfica no final do ano passado. “Minha caminhada pela Pacific Crest Trail não começou quando eu tomei a decisão de fazê-la. Começou antes de eu sequer imaginar fazê-la, mais precisamente quatro anos, sete meses e três dias antes, quando estava em um pequeno quarto da Clínica Mayo, em Rochester, Minnesota, e soube que minha mãe ia morrer”, conta. Foi a iminência da perda materna que engatilhou em Cheryl um processo de liberdade interna que ela ainda não conseguia reconhecer, uma imposição da vida para conquistar sua autonomia e fazê-la andar com as próprias pernas. “Eu estava com 21 anos, a mesma idade que ela tinha quando estava grávida de mim. Ela sairia da minha vida no mesmo momento em que eu cheguei à dela, pensei”.
A autonomia é um conceito que está ligado à liberdade de alguém em gerir livremente a própria vida, fazendo racionalmente suas escolhas: do grego, auto significa “de si mesmo”, enquanto nomia quer dizer “lei”. A autonomia nos permite criar nossas normas, se libertar em definitivo da dependência que temos dos nossos pais, cortar o cordão umbilical. Mas nem sempre é conquistada com a alegria de uma medalha em uma maratona. Ela traz consigo as dores do crescimento. Porque crescer é mesmo difícil: ser responsável por suas ações, assumir seus atos e dar a cara a bater pelas suas decisões não é tarefa simples. É algo que devemos desenvolver por anos e que culmina com a chegada da vida adulta mas que para alguns só chega aos 30, 40 anos. Nem sempre toda essa independência precisa se constituir de maneira brusca e forçada, como no caso de Cheryl. Mas, assim como a autora, também estamos passando, como sociedade, por um momento de grande dificuldade para conquistar essa independência.
A era dos pequenos reizinhos
O ensaísta americano Joseph Epstein vê com certo receio o papel que os filhos tomaram nas famílias atuais. Protagonistas da rotina doméstica, eles tornaram-se, para o autor, a obsessão de adultos culpados, que pautam suas vidas pelas decisões das crianças: do restaurante para jantar na sexta-feira à noite (tem ou não espaço para elas), até os planos sobre a nova casa a ser comprada, o próximo destino das férias, o que se fará com o dinheiro da poupança. Estamos dentro de um regime que Epstein chama de infantocracia, uma monarquia da infância, que criou pequenos reis dentro de casa. “A educação dos filhos transformou-se em uma atividade paranóica, em todas as suas facetas”, afirma ele. Nesse contexto, ele acredita que os pais se tornaram “menos que secundários, pouco mais que servos voluntários”. “A questão é que, na infantocracia, todas as decisões são centradas nos pequenos: suas aulas, suas preferências, seus horários, sua alimentação.”
Ele relata que teve uma criação muito diferente da que os meninos e as meninas têm hoje em dia. Os pais, apesar de amáveis, não o ajudavam nas tarefas diárias de casa, não queriam saber tudo sobre suas namoradas e relacionamentos afetivos, não viam seus jogos na escola e, não raro, o deixavam, ele e o irmão, sob a supervisão da vizinha do bairro quando tiravam férias “de adultos”. Os pais, não só os dele, mas de todos os meninos da rua, geralmente não se sentiam obrigados a pressionar seus filhos. Nem acreditavam ser necessário gerenciar detalhadamente suas vidas. “Mas nem por isso duvidamos um dia sequer do amor que tinham por nós”, diz o ensaísta americano.
A criação nada superprotetora permitiu que Epstein desenvolvesse sua independência, sua força interna para encarar os problemas e, por fim, sua autonomia. “A única coisa que reivindico é que viver livre do excesso de supervisão paterna me pareceu uma boa maneira de crescer, e certamente resultou em muito menos esgotamento e dilaceramento para todos os envolvidos”, pondera apesar de confessar que não tenha conseguido manter o mesmo distanciamento na criação dos dois filhos. “Minha segurança de estar fazendo a coisa certa como pai era muito menor que a dos meus pais”, assume. “Nenhuma outra geração de crianças foi tão disciplinada e cultivada, tão mimada e preparada, embora ainda não esteja exatamente claro para quê”.
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Crescer é preciso
Não é necessário percorrer quatro mil quilômetros para encontrar a autonomia, como a história que contei no início desse texto. Muitas vezes, ela está a alguns passos da porta de casa. O jornalista alemão Clemens Wergin sempre teve em mente a ideia de preparar os filhos para a tal “vida lá fora”. Assim que se mudou de Berlim (Alemanha) para os Estados Unidos, sua filha mais velha resolveu explorar o bairro, sem pedir autorização para ele ou para a mãe. “É claro que ficamos preocupados. Mas quando ela chegou em casa, percebemos que não havia motivo para pânico. Radiante de orgulho, ela nos contou como havia descoberto um pequeno parque ao virar a esquina, e que tinha feito amizade com alguns donos de cães da região. Ela havia tomado posse de seu novo ambiente”, conta Wergin.
Quando o episódio veio à tona em conversas com amigos americanos, Wergin conta que todos ficaram horrorizados. “A maioria – ficou consternada com a ideia de que seus filhos possam vaguear por aí sem a supervisão de um adulto”, relata. Ele começou a pesquisar o assunto e chegou a histórias de crianças que foram abordadas por policiais por estarem sozinhas na rua de casa. E descobriu dados como o de um estudo, realizado pela Universidade da Califórnia, apontando que meninos e meninas americanas gastam quase todo o tempo de lazer doméstico, muitas vezes, em frente à televisão ou se distraindo com jogos eletrônicos. Mesmo quando as crianças são fisicamente ativas, elas são vigiadas de perto pelos adultos, seja na escola, em casa, em atividades durante a tarde ou até mesmo no carro, transportando-os de um lugar para outro. Por que tanta vigilância? Muitos pais citaram medo de sequestro, mesmo sem levar em conta que as taxas de criminalidade diminuíram significativamente nos Estados Unidos. “As crianças nunca estão sozinhas”, diz.
Um dos estudos levantado por Wergin era capitaneado pelo psicólogo Peter Gray, professor e pesquisador do Boston College, que defende que “estamos privando as crianças de oportunidades para aprender a assumir o controle de suas próprias vidas”, conforme escreveu. O especialista argumenta que isso aumenta “a chance que eles têm de sofrer de ansiedade, depressão e outros transtornos mentais”, cujos índices subiram dramaticamente nas últimas décadas. Os pais sabem que não poderão defender para sempre os filhos dos desafios que a vida lhes reserva, por isso quanto mais cedo esses meninos e meninas desenvolvem a maturidade intelectual para navegar pelo mundo, melhor. “E por dar às crianças mais controle sobre suas vidas, elas aprendem a ter mais confiança nas suas próprias capacidades”, afirma Gray. Algo fundamental para o desenvolvimento da autonomia.
A psicóloga especializada em adolescência Mariana Schwartzmann explica que passamos, todos, de um estado de dependência absoluta quando bebês para dependência relativa, quando jovens. “Um adulto sem autonomia vai ter enormes dificuldades em encarar os processos da vida, como o mercado de trabalho e as relações interpessoais. Vai sobrecarregar o outro, seja a namorada, marido ou chefe, e não vai conseguir se responsabilizar por tudo aquilo que lhe cabe”, afirma Mariana.
Para a psicóloga, os pais estão tendo dificuldade em preparar os filhos para a vida. Estão se esquivando dos seus papéis de educadores e formadores de caráter. Educar está muito difícil diante de tantas demandas, porém essa tarefa é dos pais e é impossível delegar a outros como, por exemplo, a escola. Os filhos são cobertos por aparatos tecnológicos, porém estes fornecem apenas informações rápidas. Não substituem os contatos de relações de cuidado e afeto entre pais e filhos e com outras pessoas também. “Quem ensina o filho a pegar um ônibus ou a atravessar a rua são os pais, não há um aplicativo que os prepare para algo tão corriqueiro e essencial”, afirma. É preciso envolver a prole nas suas próprias escolhas, como decidir a roupa que a criança vai vestir. Também é preciso que ela possa se arrepender das suas escolhas sem ser reprimido (“eu te disse!!”). “Está faltando contato humano, do qual jamais podemos prescindir. Daí os jovens de hoje serem tão inseguros e dependentes”, diz Marina.
Independência, sua linda
Em pesquisas sobre como construímos nossa autonomia, o psicólogo americano Lawrence Kohlberg elencou seis fases de amadurecimento que nos levam do estado de dependência total (do ponto de vista físico ao emocional) a uma autonomia plena. De acordo com Kohlberg, só conseguimos, de fato, andar com as próprias pernas quando aceitamos e reconhecemos o que ele chama de “contrato social” e os “princípios de moralidade”: a partir da relação com o outro nos fazemos indivíduos, e do convívio com ele é que nos tornamos autônomos. “Somente assim desenvolvemos a capacidade de dar conta sozinhos das demandas da vida, de se responsabilizar por isso sem jogar para o outro”, afirma Kohlberg que, por 12 anos, estudou o mesmo grupo de 75 meninos, seguindo o seu desenvolvimento de três em três anos, a partir da adolescência precoce e ao longo da vida adulta. “Afim de desempenhar um papel social na família, na escola ou na sociedade, a criança implicitamente assume o papel dos outros em relação a si mesmo e para com os outros no grupo. Isso permite que ela ganhe autonomia”.
Assumir (e bancar) suas próprias escolhas, admitir seus equívocos, ter segurança (mesmo que não se tenha certeza) sobre os rumos por onde seguir. A autonomia pressupõe tomarmos as rédeas da vida. E, para isso, é preciso de um tanto de auto-reflexão. “Aprender a pensar sobre nossas decisões e sentimentos nos dá escolhas. Isso é ter liberdade individual”, explica ele. Significa não deixar que as rédeas se afrouxem quando nos sentimos dominados pelas nossas emoções. Porque é fácil se entregar à ansiedade com tantos compromissos, ao medo diante das instabilidades da vida (é só a minha que anda tão instável?), à tristeza nos inevitáveis momentos de solidão, à insegurança ou ao medo… Mas só nos tornamos verdadeiramente autônomos e livres quando reconhecemos aquilo que realmente queremos. E enfrentamos, de peito aberto, o que vier para conquistar isso.
As liberdades individuais pelas quais tem passado a nossa sociedade atualmente são um bom combustível para essa busca tão essencial. A emancipação (e o debate sobre ela) feminina, as questões de gênero, a luta contra o preconceito: isso tudo ajuda a reformar a nossa ideia de que tipo de pessoa somos. Mas isso não significa, claro, que a mulher, que parou de depender afetiva e financeiramente do marido e conseguiu por um ponto final em um casamento, tenha conquistado sua independência a partir de então. Ou o filho que resolveu se assumir homossexual para a família deva, a partir disso, ser muito livre na vida. “Podemos ter liberdade individual e conquistas com ou sem autonomia. Ela é algo que passa por outro viés. Uma pessoa autônoma não é aquela que faz o que bem entender. É alguém que tem a clareza das situações e assume a responsabilidade pelo que faz”, explica a psicóloga Mariana Schwartzmann. Nesses tempos atuais, também, o direito individual e a sensação de “tudo posso” tem criado mais pessoas centradas em si do que de fato independentes. Isso não significa que se possa atender a seus desejos desconsiderando totalmente as expectativas dos outros e também do mundo. Autonomia é razão lúcida, equilíbrio, e pressupõe maturidade, disposição para assumir seu destino. E, nesse sentido, o outro é fator decisivo. Porque não vivemos sozinhos e solitários no mundo. “Nossa vida perpassa a relação com o outro, e a posição egocêntrica não leva em consideração o outro, tampouco nos traz essa autonomia idealizada”, diz.
O terapeuta de crianças e adolescentes francês Marcel Rufo escreveu o ótimo livro Me Larga! Separar-se para Crescer (Martins Fontes) em que conta a nossa peregrinação pela independência emocional, e como entender o papel das nossas relações para distanciar-se delas é imprescindível (ou, talvez, a única forma possível) para crescermos. “Cada qual precisa do outro para se construir e se conquistar, para se tranquilizar às vezes, e para compartilhar momentos, ideias e desejos. O outro é precioso na medida em que representa uma abertura para o mundo”, ele defende. “Prender-se, desprender- se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar… Toda a nossa vida segue esse movimento permanente”, afirma Marcelo Rufo. Como no caso de Cheryl, é preciso desprender-se não apenas para se encontrar, mas para também abandonar os sentimentos que nos mantém presos ao passado, a um conforto da dependência porque, afinal, é confortável (e paradoxalmente mais libertador ainda) se saber amparado. Algo que a conquista da autonomia também pode nos oferecer. Principalmente quando é a única opção que resta. Ou, como escreve ela, em um dos inúmeros momentos em que se questionou sobre qual o próximo passo teria a seguir: “Olhei para o sul, de onde vim, e considerei as opções. Havia apenas uma, eu sabia. Sempre havia apenas uma. Continuar andando”.
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