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Estamos perdendo a capacidade de viver pleno
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Precisamos da diversidade de emoções, das boas para sublinhar as nossas crenças, das ruins para reconhecê-las e também pelo seu efeito catártico. Precisamos de todas elas, inclusive das que trazem desconforto e das que afligem

Diante de um mapa, focamos sempre no caminho mais curto. Uma dor lancinante? Um remédio de efeito rápido. E se não puder ser o mais rápido, serve também o mais fácil. Aprender inglês dormindo só não tem um número recorde de alunos devido a descrença nos resultados. Temos uma atração irresistível pelos atalhos. É instintivo, compreende-se. O perigo é quando se trata da nossa saúde psíquica. Viver no tempo e na intensidade natural da existência, com tudo que ela traz, é cada vez mais raro. O olhar reflexivo sobre a vida que levamos, o encontro consigo mesmo, o diálogo interno estão perdendo adeptos. O aconselhamento ou terapia com um profissional psi também é para uma minoria.

Não há paciência — leva muito tempo — as buscas agora são fora de nós. Alguns vão para as áreas místicas, outros refugiam-se no mundo virtual e grande parte, literalmente, “ausenta-se” da vida, com o consumo de medicamentos antidepressivos, estabilizadores de humor e controladores de ansiedade. As estatísticas apontam que, no Brasil, o consumo desses medicamentos duplicou nos últimos cinco anos e, em Portugal,  entre 2000 e 2017, o consumo mais do que triplicou. Em 2000, em terras lusas, o consumo era de 30 doses diárias de antidepressivos por mil pessoas, em 2017 esse número chegou a 104 *.

A coragem de viver

E para onde foi a coragem de viver a vida de mãos limpas, sem muletas esotéricas, sem escadas, sem anestesias? Está esquecida e estamos perdendo o melhor da nossa essência. Vive-se numa espécie de letargia permanente. Deixa-se de sentir os socos no estômago, mas também perde-se a capacidade de experimentar os estados de admiração e plenitude. Se não abrirmos os olhos, em breve, maravilhamento e êxtase só existirão no cinema. O poeta alemão Goethe afirmava que o ser vigoroso só emerge das profundezas do desespero.

Os adversidades tornam-nos mais fortes e funcionam como uma couraça de proteção. A tristeza faz com que valorizamos e vivenciamos com mais intensidade a alegria. O luto ajuda a compreender e pacificar as perdas. Precisamos dos tempos de recolhimento e solidão para reconstituir o nosso tecido rompido. Porém, hoje, todo o conhecimento — da cultura e da ciência — parece querer anular esta parte. Querem partir do problema para a transformação rápida. De preferência, uma terapia em duas seções ou um medicamento de efeito instantâneo. Muitos defendem essas técnicas em nome do instinto. Mas é preciso que se diga que nem sempre o instinto trabalha para o melhor ou a nosso favor.

Deixa-me sentir!

As emoções são sinais maravilhosos  ­— elas nos alertam para o perigo e nos mobilizam para uma ação necessária. Sendo assim, por que elas assustam? Porque não compreendemos como elas funcionam e tudo que é desconhecido assusta. E não é sem razão. As emoções são altamente complexas. Por que um se sente excluído e sem saída e recorre às drogas ou comete suicídio e outro, apesar de sentir o mesmo, opta pela vida. À parte a questão da patologia mental, uma possível razão seja a riqueza de repertório emocional.

Como há muitas outras emoções pelo meio, o humor sombrio não domina completamente a psique. As emoções se encontram, cruzam dados, refletem, desconfiam… Experimente o seguinte exercício: quando você se sentir medíocre e indesejado, certifique-se se a origem dessa apreciação não vem de pessoas de suas relações que se sentem desprezíveis e indesejadas e que projetam essas desvalorizações em suas vítimas involuntárias — no caso, você. Uma recomendação clássica é antes de diagnosticar a si mesmo com depressão ou baixa autoestima, primeiro certifique-se de que você não está, de fato, num cenário muito desfavorável.

O exercício funciona. O problema é que essa prática exige tempo, solidão, recolhimento. Exige paciência. Trata-se do encontro de partes maiores de nós mesmos que vão além da nossa opressão momentânea…. É preciso integrar o sofrimento, olhar para ele, assumir erros e caminhar um nível acima, numa espécie de reconciliação. A serenidade e a bem-aventurança vem da coexistência duramente conquistada entre partes rivais de nós mesmos, partes que às vezes agonizam, mas que a seu tempo, transforma-se em plenitude, em gosto em viver.

Sem prática, sem conquista

O outro ponto é que hoje é muito fácil ignorar esse exercício. Lidar com quem somos e com quem estamos dispostos a ser é interrompido a cada minuto. É o mesmo que acontece às crianças em que os pais impedem a sua queda, inviabilizando a prática, logo, a conquista do “estar de pé”.  Somos seduzidos por uma avalanche de dispositivos — a mediação pela tecnologia — e promessas de fórmulas mágicas, tornando muito tentador deixar que outros façam o trabalho por nós. Sejam medicamentos, aplicativos de psicoterapia, workshops de duas sessões ou a distração da navegação na Internet. Existem inúmeras maneiras de supor que nossa dor foi dissolvida, que fomos transformados e que estamos no caminho certo.

E mais grave: os adeptos do freio de mão na vida estão estendendo essas práticas aos filhos. Qual é o pai hoje que senta ao lado do filho e o encoraja a enfrentar o seu tormento? Qual é a mãe que não cede a birra do filho e impede que ele experimente o sentimento de frustração? Crianças ativas, exuberantes, ansiosas, irascíveis, mal-humoradas ou as simplesmente “mal-educadas” estão sendo medicadas com antidepressivos e estabilizadores de humor. Embora esses remédios às vezes possam salvar vidas, há muitas doses ministradas por insegurança dos pais e pressão de farmacêuticas mais preocupadas com lucros do que com o cuidado a longo prazo das crianças e dos seus recursos para viver a vida.

Eu comigo mesmo

E o que está do outro lado, qual é a outra opção? É habitar o nosso mundo interior,  um espaço para o recolhimento, sentir, refletir… Há mais alternativas? Sim. Igualmente dura e demorada. Há a ajuda da partilha humana: as conversas com os amigos de alma, conselheiros, os terapeutas psis. Eles não vão eliminar as angústias num passe de mágica e também não vão mascarar os problemas. O encontro com o outro é um espelho que amplia a consciência e ajuda a aguentar a tempestade. Mas nas duas opções — você com você mesmo e/ou com a ajuda do outro — a vida é sua, o trabalho é seu.

O que ganho com isso?

A pergunta fundamental de hoje é: o que acontece se for removida as lutas da vida, negar a biologia e eliminar o desagradável e o incômodo com tecnologia e drogas? O que acontece se ignorarmos a necessidade de se enfrentar demônios, desconfortos e lágrimas? Eu arrisco uma resposta. Competências sofisticadas da nossa essência como a busca de significado, de propósito e luta por amor deixarão de existir.

É verdade que os medicamentos e a conexão com dispositivos virtuais podem poupar você da inércia do desespero, do terror da fragilidade, da angústia da incerteza, do pânico de se sentir perdido… a lista é imensa. Mas é igualmente imensa a lista da sensibilidade desenvolvida por quem “sente” a vida. Esses terão a criatividade vinda da solidão, o estímulo que vem depois do desespero, a humildade gerada pela fragilidade, a coragem despertada pelo medo, a força despertada pela raiva, o rico aprendizado da autoexploração, a clareza depois da desordem…  Porque é assim que funcionamos. O autoconhecimento só vem quando enxergamos com nitidez — e aceitamos — os nossos paradoxos. São os traços de medo em um relacionamento amoroso, o toque de tristeza em um momento de alegria, o misto de admiração e inveja nas amizades…  E não existe maior riqueza na vida do que ter consciência deles. Isso é ser lúcido.

Leve tudo!

E não é apenas pela certeza de que “o choro dura uma noite, mas a alegria vem pela manhã”, a nossa complexa psique precisa de todas as emoções e em todas as intensidades. É preciso experimentar o rigor de estar só, procurar as origens dos nossos medos, aceitar o incerto, os mistérios. E a nossa natureza precoce tem essa sabedoria. Os pedopsiquiatras sabem que a criança quer ouvir uma história inúmeras vezes porque a cada narrativa ela identifica-se — e vivencia —  com todos os personagens, inclusive os maus.

Hoje, a criança ouve o conto e “vive” os dramas da princesa, no dia seguinte, ela ouve a mesma estória mas vive os dramas da bruxa. Precisamos da diversidade de emoções, das boas para sublinhar as nossas crenças, das ruins para reconhecê-las e também pelo seu efeito catártico. Precisamos de todas elas, inclusive das que trazem desconforto e das que afligem. É assim que aprendemos o repertório para o exercício da empatia. É daqui que vem o autoconhecimento, a compreensão do outro e as ferramentas para lidarmos com os caprichos do mundo. Faça dessa a sua grande ambição para o novo ano: Mais emoções. Mais intensidade. Mais Vida!

*Respectivamente, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

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