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Um atalho para Kaliningrado
Nikolai-Tisuguliev
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Neste artigo:

No norte da Europa, uma passarela de areia sobre o mar leva a um território que poucos conhecem e onde história, autoconhecimento e gemas preciosas aguardam quem faz a travessia.

O pneu derrapou seco levantando poeira do chão de areia batida antes de parar definitivamente. Eu vinha logo atrás, também de bicicleta, e precisei frear de repente ou atropelaria a Jurga, minha amiga lituana. “Adiante é Kaliningrado, mas não posso te levar até lá. Se quiser ir, terá de fazer a travessia sozinha.”

Havia algo de desdém e ressentimento nas palavras dela. Estávamos no último vilarejo da Curlândia antes dos portões da fronteira fecharem nosso caminho. Essa história aconteceu antes da guerra Rússia x Ucrânia começar.*

No norte da Europa, a Curlândia é um longo braço de areia e pinheiros que sai do continente, avança 100 km feito passarela sobre as águas geladas do Mar Báltico e conecta dois países. Numa ponta fica a Lituânia, na outra está Kaliningrado — que não é exatamente um país, mas um “pedaço da Rússia fora da Rússia” apertado entre países europeus.

Faixa da Curlândia sobre o mar

Faixa da Curlândia sobre o mar (imagem: Juliana Reis)

Minha amiga não pode entrar lá sem permissão porque, desde o fim da União Soviética, Lituânia e Rússia não se falam direito. Antes se fundiam no mesmo mapa, hoje estão separadas. Em todo caso, Jurga não faz a menor questão. Mas eu — que até então nunca tinha ouvido lhufas sobre Kaliningrado — fiquei intrigada com a chance de tomar um atalho e conhecer um lugar novo. Digo atalho porque há outra forma de se alcançar Kaliningrado, que é dando a volta pelo continente.

Acontece que cortar caminho costuma ter seu preço, foi o que aprendi por aí. Trajetos secundários podem ser mais curtos, mas nem sempre os mais seguros. É só olhar para trás: mais de mil anos antes de mim, cavaleiros e mercadores já tinham se dado mal cortando caminho pela Curlândia. Nesse lugar, onde o vento bate forte, as dunas ondulavam de tal maneira que atordoavam os aventureiros de outrora — inclusive, uma antiga aldeia engolida pela areia jaz ali bem embaixo de uma delas. Hoje, os pinheiros plantados na região até que domam as dunas e bloqueiam as rajadas, mas um pouco do sopro forte ainda retorce troncos e galhos nas florestas dançantes e desequilibra a bike. Se eu fosse pegar o atalho, que então fosse de ônibus. Foi o que fiz dias depois.

Travessia

Pela janela fui perdendo de vista as casinhas coloridas enquanto nosso ônibus seguia rumo a Kaliningrado. A Curlândia lituana é pontilhada por esses vilarejos fofos, balneários bem populares nos finais de semana e no verão. Agora todo mundo pode ir, mas na era soviética só usufruía daqui quem fosse amigo do regime vigente (o que não era o caso da família da minha amiga, que preferiu não me acompanhar desta vez).

Casas coloridas (imagem: Juliana Reis)

No portão da fronteira, guardas fazendo carão checaram o passaporte de cada passageiro e deliberaram por mais de uma hora.

Isso de ficar parada em terra de ninguém me causa aperto, medo, saudade da mãe e vontade de estar protegida no almoço de domingo da família.

Finalmente liberado, nosso motorista acelerou em solo estrangeiro, ainda na Curlândia, só que agora russa, e aí veio a mata mais fechada e salpicada de placas demarcando área militar. Kaliningrado é o lar de forças russas significativas, incluindo a Frota Báltica.

Apesar do nome homenagear um cidadão russo — o camarada bolchevique Mikhail Kalinin, da turma que fundou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e que foi amigão de Stalin — Kaliningrado transborda mesmo é em referências germânicas. Não falo só da cerveja, que ao chegar me pareceu muito mais popular do que a vodka, nem nos cantos com jeito de cidade medieval alemã.

Cavalaria, história e filosofia

A novela toda é que, antes de ser anexada à URSS no término da Segunda Guerra Mundial, isso aqui foi parte de um estado alemão — e assim foi por séculos! Foi quando comecei a entender. Kaliningrado não é só um pedaço de terra qualquer que ficou nas mãos da Rússia, ensanduichado entre a Polônia, a Lituânia e o mar depois do fim da URSS em 1991. Kaliningrado é a mítica Konigsberg! Antigo refúgio de uma importante ordem de cavaleiros medievais, a dos Teutônicos.

Mapa de Kaliningrado (imagem: reprodução)

Aliás, é também a tal Konigsberg onde nasceu um dos mais famosos pensadores do mundo, o filósofo Immanuel Kant — daí, claro, um tanto depois dos cavaleiros, em 1724. Você já deve ter ouvido uma citação de Kant dizendo que “não somos ricos pelas coisas que possuímos, mas pelo que podemos fazer sem possuí-las”. Tem também aquela observação sobre podermos julgar o coração de um homem pela forma como ele trata os animais.

Kant foi um dos grandes pensadores do Iluminismo, movimento que renovou os ideais de liberdade na Europa nos séculos 17 e 18. Entre muitas outras profundas reflexões propostas por ele, uma das que melhor compreendo é a de que quando agimos não motivados por medo ou por desejo (ou seja, sem ligar para se algo nos vai ser dado em troca ou retirado) nos libertamos dos condicionantes do mundo e atingimos a autonomia.

Catedral onde está o túmulo de Kant (Foto: Juliana Reis)

O filósofo batiza a secular Universidade Federal dos Bálticos Immanuel Kant, uma da muitas escolas de ensino superior desse lugar a receber (pelo menos até começar a guerra entre a Rússia e a Ucrânia), estudantes do mundo inteiro, atraídos por valores acessíveis e a pela possibilidade de estar “dentro da Europa”, ainda que numa “ilha russa”.

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Konigsberg está entranhada, mas constantemente ressurgindo, nas ruínas de antigas pontes e de castelos medievais que, se não foram destruídos pela Segunda Guerra Mundial, acabaram engolidos ou parcialmente cobertos pelo jeitão seco e abrutalhado da arquitetura comunista que veio a seguir.

O maior representante dessa mixórdia chama-se Casa dos Sovietes, edifício construído por cima dos restos do principal Castelo de Konigsberg para abrigar escritórios do governo. Nunca foi ocupado. Em 1985 acabaram-se os fundos para continuar a obra e, em 1991 o que acabou de vez foi a União Soviética, de modo que aquela modernosa caixa de concreto de mais de vinte andares e janelas estreitas ficou lá, sobrando… Lembrança de uma era.

Edifício Casa dos Soviets (Foto: reprodução)

Pedra do tempo

Mas existe algo que chegou no território há muito tempo — bem antes mesmo dos soviéticos, dos alemães, de Kant ou dos teutônicos — e ainda é visível. Âmbar! O líquido viscoso que escorreu do pinheiros do norte da Europa para o mar há coisa de 30 milhões de anos, veio arrastando junto pedras, insetos, areia, conchas… e parou nas águas calmas e frias do Mar Báltico bem na altura de Kaliningrado!

Pedaços de âmbar (Foto: Juliana Reis)

Por guardar o tempo dentro dela, os pedaços da resina transparente, endurecida, da cor do mel e do sol, são valiosos. 90% de toda a reserva dessa preciosidade no planeta está em Kaliningrado, onde é colhida industrialmente — ou na brincadeira, por quem se anima a procurar pelos pedaços que o mar revolto joga nas praias após as ressacas e as tempestades.

Para mim, pareceu um tantinho metafórico que o símbolo de Kaliningrado seja uma gema preciosa (cujo valor nem todo mundo conhece) que guarda história dentro dela.

A volta

Após quase uma semana de experiências em Kaliningrado, tomei o ônibus de volta. No caminho, refleti sobre o quanto a estrada sempre me fornece uma energia de renovação de vida. Mesmo quando ela vai na direção do desconhecido. Mesmo quando ela me oferece um atalho (escolha que ainda me mete medo) para um país intrigante que até então mal aparecia na maioria dos mapas.

Eu continuo a acreditar na importância de buscar um saber que nasce num lugar que não é a sala de aula.

Existem histórias para serem conhecidas e contadas em todos os lugares. Elas podem brotar de encontros simples e despretensiosos, das ligações mais improváveis, dos caminhos secundários… Como você vai encontrá-las, se vai encontrá-las, se vai gostar ou não, se elas vão te transformar ou cair no esquecimento… tudo depende do seu olhar e da sua sensibilidade para perceber os estímulos do mundo. Podem estar guardadas num país que você nunca soube que existia, ou num olhar mais atento sobre uma cidade que você já conhece… Podem estar esperando há anos para serem descobertas, como aqueles milhares de anos guardados num pedaço de âmbar.

Nosso ônibus se aproxima novamente da demarcação da fronteira e para. Um guarda embarca e caminha pelo corredor pedindo os passaportes, no que estico o braço e entrego o meu. Ele me reconhece, desfaz a carranca e sorri enquanto pressiona o pesado carimbo de metal sobre uma página livre do documento. Clic! O selo estampado onde se lê Калининградская область vai se juntar a tantos outras numa gaveta lá de casa quando esse passaporte perder a validade. São meus atestados de coragem. Troféus que guardo para lembrar que, apesar do medo das travessias, toda vez que as faço, volto melhor do que quando fui.

O guarda desce, a porta bate, o ônibus arranca lentamente — arrisco um aceno aos companheiros fardados do lado de fora, eles me devolvem o gesto com sorrisos e um leve aceno de cabeça. Por que não fizeram assim na primeira vez que passei por aqui? Eu ia me sentir tão melhor…

O ônibus ganha velocidade. Os pinheiros agora correm pela janela, uma casa colorida passa também, depois outra, mais outra… Vejo um retalho do mar, um pescador, um grupinho colhendo cogumelos na floresta, as dunas gigantes… Abro a janela, sinto o vento da Curlândia no rosto. Estou de volta!


*Trens russos de carga ou de passageiros transitam pela Lituânia para chegar em Kaliningrado. Eles não fazem o caminho que eu fiz. No início dos anos 2000, quando a Lituânia entrou para a União Europeia e para a OTAN, um acordo foi firmado para deixá-los passar por um corredor continental vigiado. Agora, com a guerra provocada pela Rússia contra a Ucrânia, a Lituânia, com o apoio da União Europeia, está restringindo o transporte até Kaliningrado, provocando a indignação russa. A confusão trouxe o nome do pouco conhecido Kaliningrado aos noticiários.

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JULIANA REIS é uma contadora de histórias de viagem, chorona assumida e admiradora dos que têm a coragem de revelar suas vulnerabilidades. No Instagram, descreve suas impressões no perfil @viagenstransformadoras. Escreve aqui, no portal Vida Simples, mensalmente.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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