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Seus ouvidos servem apenas para ouvir suas próprias palavras?
Priscilla Du Preez
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Os americanos têm uma expressão popular bastante significativa, usada no título da música de Beyoncé: “Me, myself and I”, que em sentido quase literal quer dizer “eu, eu mesmo, eu”. Não há mal nenhum em alguém se apaixonar por si mesmo. Em certas circunstâncias, chega a ser importante para elevar a autoestima e viver uma vida mais plena. O problema surge quando a pessoa ultrapassa as linhas do bom senso e do equilíbrio social. Vamos ver quais são esses limites e os cuidados que precisam ser tomados.

Baltasar Gracián, um “polêmico” jesuíta espanhol, que viveu de 1601 a 1658, em sua obra Oráculo Manual e Arte de Prudência alerta: “Pouco adianta agradar-se a si, não agradando aos demais”. E, para desestimular ainda mais quem insiste em agir de maneira distinta, adverte para o perigo de suas ações: “Via de regra, o desprezo geral castiga a satisfação particular. Quem muito se apraz de si não causará prazer aos outros”.

O autor continua fustigando aqueles que se encantam com as próprias palavras: “Querer falar e ouvir-se ao mesmo tempo não dá certo; e se falar sozinho é loucura, escutar-se na presença dos outros será loucura dobrada”.

Conversas repetitivas

Vou confessar aqui um pecadilho que se transformou em uma das mais importantes lições da minha vida. Eu era muito jovem, pelo menos para exercer a atividade que havia abraçado, professor de oratória. Tinha apenas 24 anos. Para dar ideia de como era garotão, não tinha um único aluno mais novo que eu, todos eram bem mais velhos. Na tentativa de conquistar mais credibilidade, me vestia com roupas escuras e deixei crescer um bigodinho ridículo, ralo como penugem. Não funcionou. Fiquei com mais cara de moleque ainda. 

Não importava. Eu estava apaixonado pelo trabalho que começara a desenvolver. Não pensava em outro assunto. Lia todos os livros de oratória que encontrava pela frente. Alguns deles, reli diversas vezes. Sentia prazer em discutir sobre tudo o que se relacionava com a arte de falar em público. Até que certo dia ouvi um comentário que me deixou profundamente envergonhado.

Passava uns dias de férias em Serra Negra em um hotel em que costumava me hospedar com frequência. Conversando com outros hóspedes, um deles me disse: “Você gosta muito de oratória, né?”. Prontamente respondi que sim. Ele complementou com tom irônico: “É, dá para perceber, pois você praticamente só fala desse tema”. Naquele momento caí em mim. Percebi que havia me tornado um chato com a conversa repetitiva. Fiquei tão constrangido que por um tempo evitei contato com aquelas pessoas. 

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Aprendizados

Depois de me acalmar, percebi que o fato havia sido benéfico, já que aprendera a não falar tanto sobre a minha atividade profissional. Daí para frente, quando alguém fazia perguntas sobre oratória, dava uma rápida explicação e imediatamente devolvia a questão para saber a respeito do interlocutor. Em todos os casos, sem exceção, as pessoas falavam delas com prazer. Não estavam mesmo muito interessadas em me ouvir. Pelo menos não mais sobre o tema pelo qual havia me apaixonado. Se tivesse lido o “Oráculo manual” naquela época, provavelmente não cometeria esse erro.  

Falar bem não significa falar muito, tampouco reiteradamente a respeito do mesmo assunto. Quem fala em demasia se torna cansativo e irritante. Algumas pessoas parecem ter ouvidos apenas para a própria voz. Não percebem que os outros, aos poucos, dão desculpas e vão se afastando até que não sobre ninguém para servir de plateia.

Pior ainda são aqueles que exigem atenção. Falam, falam, falam e em seguida perguntam se estão acompanhando sua narrativa. Gracián também critica quem se comporta assim: “É uma fraqueza dos grandes falar com aquele estribilho de ‘ouviu o que eu disse?’ e daquele ‘não é mesmo?’ que azucrinam a paciência dos ouvintes”. 

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Ficar em silêncio não resolve

O autor se preocupou ainda em descrever as reações desses falantes: “A cada frase abanam as orelhas procurando ouvir aprovação ou lisonja, causando aflição à sensatez”.

Sem contar os que dão a impressão de viver em cima de um palco em busca de aplausos para as suas arengas. Mais uma vez, o autor descreve o abusado: “Também os empolados falam com eco e, como a sua conversação anda sobre o coturno da arrogância, exigem a cada palavra o socorro enfadonho do estúpido ‘muito bem!’, ‘apoiado!’”.

Não significa que você não deva falar, que seja obrigado a manter a boca fechada o tempo todo. Esse extremo também não é recomendável. O jeitão de “múmia” pode ser ainda mais desagradável que o de falador. O ideal é falar e ouvir, falar e ouvir. Segundo o neurobiólogo chileno, Umberto Maturana, na obra Antologia da realidade essa troca se subordina “a um fluir de nosso emocionar”.

É preciso saber dosar a fala

Com palavras mais ou menos semelhantes ele afirma: para que nós, seres humanos, possamos interagir nas conversações, é necessário que haja uma convergência de quereres, de desejos, que eles sejam estimulados e instigantes, a tal ponto que nos levem a permanecer em “interações recorrentes”, até que a emoção acabe e com ela também o linguajar.

Tenho hoje uma filosofia de conduta que me ajuda muito nos relacionamentos. Talvez possa servir para você também. Se há no grupo alguém falando, permaneço em silêncio. Só me pronuncio se for provocado. Se ninguém fala, não deixo a conversa cair naquele silêncio sepulcral. Começo a falar, ou para contar uma história bem curta, apenas para animar a turma, ou faço uma pergunta para que outra pessoa se manifeste. Assim, não deixo de falar, mas também não me torno o verborrágico do encontro. Doeu na época, mas valeu muito a lição.

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