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Professores que deixam saudade
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Os professores deixam marcas que permanecem pela vida toda. Até aqueles que considerávamos mais distantes nos acompanham para sempre. Na verdade, se observarmos bem, em alguns casos, os não muito simpáticos, ainda que criticados, são até lembrados com mais frequência em nossas histórias. Com o passar dos anos, acabamos por descobrir que alguns dos mestres mais rigorosos nos ajudaram de maneira mais plena para o nosso crescimento.

Há alguns dias, assistindo a um vídeo que ensinava cálculos matemáticos, bateu uma saudade gostosa e, ao mesmo tempo, doída de alguns mestres da época do curso ginasial. Estou me referindo aos anos 1960. O primeiro que me veio à mente foi o professor Ulisses Ribeiro, que lecionava matemática.

Essa matéria sempre foi, é e será complicada na vida de muitos estudantes. Dizem que ela é a responsável pela existência dos melhores engenheiros e dos melhores advogados. Os engenheiros abraçaram essa profissão porque gostam muito de matemática. Os advogados, ao contrário, seguiram essa atividade por não gostarem nada dessa disciplina. Lógico que é uma brincadeira, mas tem seu fundo de verdade. O professor Ulisses motivava a todos que estudavam com ele a gostar “das contas”. 

 Professor Ulisses Ribeiro. Foto: Arquivo/ reprodução

Professor Ulisses Ribeiro. Foto: Arquivo/ reprodução

Era espetacular! Mesmo sendo bastante rigoroso, não havia quem não gostasse dele. Mantinha a atenção de todos com suas brincadeiras e maneira de se expressar. Se, por acaso, um aluno “viajasse” com seus pensamentos e se desligasse da aula, o professor recorria à sua estratégia favorita. Carregava pedacinhos de giz nos dois bolsos do jaleco. Ao perceber que o pupilo estava presente só de corpo, já que a mente havia fugido para fora da sala, a uma distância de uns cinco metros, usando os dedos como se estivesse jogando bolinhas de gude, atirava o giz na testa “da vítima”. Sua pontaria era perfeita, jamais errava. Todos davam gostosas gargalhadas, até aquele que fora alvo da brincadeira. Nunca houve um único caso de alguém que se sentisse agredido com a sua atitude.

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Sei que hoje, com os cuidados até exagerados para respeitar a individualidade das pessoas, se um professor ousasse se comportar assim, provavelmente, seria repreendido e, em certos casos, até demitido. Uma pena que tenhamos trilhado essa direção. Naquela época tudo era mais espontâneo, e a interação professor/aluno costumava ser encarada com muita naturalidade. 

Aos críticos, faço uma sugestão. Conversem com alguns dos ex-alunos do professor Ulisses. Perguntem a eles se em alguma ocasião se sentiram diminuídos ou ridicularizados com as brincadeiras do mestre. As respostas, com certeza, serão só de admiração e agradecimento por tudo o que receberam dele.

O filho do professor Ulisses era meu colega de classe. Todas as vezes em que me convidava para estudar na casa dele, sem hesitar, eu aceitava. Imaginava, ingenuamente, que o Ulissinho seria protegido pelo pai e, quem sabe, pudéssemos saber com antecedência quais seriam os exercícios da prova. E eu estava certo. Assim que nos via, imediatamente o mestre entregava uma folha com mais de uma centena de questões. Com aquele olhar matreiro, avisava: “Podem fazer todos esses exercícios, pois garanto que alguns deles cairão na prova”. Ele nunca nos enganava. A prova era feita com base naquela lista. Dessa forma, estudávamos e aprendíamos. 

No dia em que o professor Ulisses Ribeiro morreu, a cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, parou para homenageá-lo. Ex-alunos que já estavam morando em outras localidades foram até à Morada do Sol para prestar a última homenagem àquele que fora tão importante em sua formação. 

Coincidentemente, quando vim para São Paulo para continuar os estudos e trabalhar, durante um bom tempo morei na pensão da Dona Zenaide, ali na Vila Clementino. Para a minha surpresa, descobri que lá também se hospedava o Ulissinho. No quarto havia um beliche. Eu dormia na cama de cima e ele na de baixo. O antigo colega de classe cursava medicina naquela região. Foram momentos de grande alegria e de convivência muito agradável. Nas nossas conversas nos lembrávamos das tardes de estudo e da lista sem fim de exercícios sugerida pelo seu pai.

Em meio a essas lembranças, comprei num sebo um exemplar do livro adotado pelo querido mestre. A obra “Matemática – curso ginasial – 4ª série”, de autoria de Oswaldo Sangiorgi, editado pela Companhia Editora Nacional – São Paulo. O livro chegou intacto, muito bem conservado. Folheei lentamente cada uma de suas páginas. Vi com atenção os exercícios recomendados no final de cada matéria. Depois de tantas décadas, ainda me lembrei de muitos deles. Aqueles mesmos que o professor indicava em suas listas para o nosso estudo. 

um livro de cores branco, azul e vermelho com o nome matemática em branco e azul.

Foto: Reprodução/ Companhia Editora Nacional

Bateu uma enorme saudade. Ali, com o livro nas mãos, durante um bom tempo, deixei que uma espécie de filme passasse pela minha mente. Eu me lembrei do professor, da sala de aula, dos colegas. Tive a impressão de vê-lo jogando um pedacinho de giz na minha testa para que eu voltasse à realidade. Ouvi nitidamente os colegas gargalhando e eu participando com eles da brincadeira.

Sei que sou saudosista. Até demais. Essas recordações, todavia, me ajudam a viver melhor e mais feliz. Agora mesmo, no momento em que escrevo, estou aqui com o livro de matemática nas mãos. Quanta saudade!

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião da Vida Simples.

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